Eu poderia, de certa forma, ter encerrado esta série sobre Desenho Urbano na semana passada, quando escrevi sobre o Novo Urbanismo. Diversos autores o teriam feito, calçados no fato de que os grandes direcionamentos da década de 1960 parecem perdurar e se fortalecer até hoje.

Por outro lado, se passaram 60 anos de lá para cá. Creio que seria negligente de minha parte ignorar o que se passou pelo desenvolvimento do desenho urbano nas últimas seis décadas, ainda que numa perspectiva ampla e num futuro distante talvez seja um preciosismo ou excesso de detalhe falar sobre os movimentos seguintes.
Ora, que seja, pois estou falando para seres humanos contemporâneos a mim, aos quais mais algumas informações são, certamente, relevantes.
Acredito que a década de 1970 ressignificou a tecnologia para a humanidade. Até então, predominava o deslumbramento e o entusiasmo com o porvir do desenvolvimento das máquinas. Prova disso foi a febre das produções de ficção científica das décadas de 1950 e 1960 (Flash Gordon, Star Trek, Perdidos no Espaço, etc.). Entretanto, a partir da década de 1970 alguns ícones da tecnologia perdem força: a segunda missão tripulada à Lua não tem mais o mesmo appeal, as crises econômicas colocam em xeque a busca desmesurada dos motores pela potência, os conflitos sociais se agravam, a qualidade de vida urbana se empobrece. Houve uma sequência de eventos econômicos globais que construiu esse cenário:
- Choque do Petóleo, 1973, em protesto ao apoio dos Estados Unidos a Israel durante a Guerra do Yom Kippur. A OPEP reajustou o preço do barril do petróleo em mais de 400%;
- Segundo Choque do Petróleo, 1979, em decorrência de instabilidades no Irã e quebra da produção daquele país, um dos maiores fornecedores mundiais;
- Crise da dívida e moratória do México, 1983. Até então, com a forte oferta de dólares no mercado internacional (inclusive em decorrência dos Choques do Petróleo), os países em desenvolvimento se endividaram muito a juros muito baixos. A partir de 1983, os juros disparam no mercado internacional, elevando perigosamente a dívida externa desses países. No Brasil, marcou o início de uma espiral inflacionária que só seria detida pelo Plano Real em 1994.
A consequência urbanística foi a mais lógica: o preço do cimento (insumo produzido em altos-fornos alimentados a diesel) dispara, grandes conjuntos habitacionais e as cidades novas passam a ser questionados. O planejamento urbano se desloca dos planos mestres regionais para o bairro e o local imediato das pessoas. Inclusive o longo prazo dos planos passa a ser questionado diante de fortes evidências de futuros cada vez mais imprevisíveis [1, p.417]. Com isso, as cidades passam a ser mais identificadas por visuais possíveis de observadores em posições reais (uma certa herança de Gordon Cullen), e menos pelas abstrações de mapas e plantas que só seriam aproximadamente identificadas se fossem vistas do alto, o que raramente acontece no cotidiano.

Diante de incertezas crescentes, da desconfiança da máquina e da iminência de novas revoluções tecnológicas que certamente dobrariam o mundo jogando a humanidade num ambiente novo e desconhecido, surgem novas produções de ficção científica, dessa vez distópicas: Blade Runner (1982), Akira (1982, mangá) e Neuromancer (1984) são exemplos emblemáticos daquilo que viria a ficar conhecido como movimento cyberpunk.
Outro elemento curioso que perdura nesse movimento é a tendência a mostrar um futuro distópico a partir de premissas que já estavam, na época, em processo de descontinuidade. Aparentemente, havia um grande e forte período de incertezas a se prenunciar aos urbanistas da década de 1980. As consequências do pessimismo e da falta de um norte idealista seriam sentidos por muito tempo dali em diante.

Fonte: [1] LAMAS, José Maria Ressano Garcia. Morfologia urbana e desenho da cidade. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2000.
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