A cidade renascentista

A história da arquitetura costuma dividir o Renascimento em várias fases [1]:

  1. Primeiro Renascimento (1420 – 1500, na Itália)
  2. Renascimento tardio (1500 – 1600)
  3. Barroco (1600 – cerca de 1765)
  4. Rococó e Neoclássico (1750 – 1900, variando conforme a região)

Com a recuperação econômica e política europeia da Baixa Idade Média, também houve um resgate de referências culturais clássicas, evidentemente greco-romanas, associado ao desenvolvimento filosófico e científico ocidental. Também houve uma grande assimilação de conhecimentos adquiridos com outros povos, em especial os árabes e orientais.

O novo momento intelectual de retomada do racionalismo, em oposição ao misticismo medieval, provocou mudanças profundas na sociedade da época, o que se refletiu na pintura, escultura, arquitetura e urbanismo. A partir dos desenvolvimentos da perspectiva, sua expressão mais representativa surgiu em Florença e rapidamente se propagou pelo resto da Itália, um território onde o gótico medieval não era muito bem aceito por diversas razões culturais, em especial pelo vínculo com as referências romanas do passado. Em pouco tempo, a influência florentina já alcançava praticamente toda a Europa.

Para a arquitetura em especial, dois fatos contribuíram para a inflexão renascentista: a descoberta de textos clássicos de Vitrúvio (De Architectura) e o fluxo migratório de muitos artistas gregos para o território italiano após a tomada de Constantinopla pelos turcos em 1453. Importante observar que os escritos vitruvianos apareceram numa época em que os artistas italianos já valorizavam obras clássicas, o que pode ter levado ao estabelecimento de um novo ícone cultural talvez superior ao seu real valor [1].

A arquitetura renascentista surge primeiro na pintura, pioneira em desenvolver espaços construídos virtuais seguindo os princípios que viriam a caracterizar o Renascimento: influência clássica, simetrias, ordem e disciplina geométrica, além da assepsia de ambientes racionais até onde era possível à época. A recém-criada Imprensa ajudava a disseminar teorias e desenhos, num potencial de alcance e replicabilidade inéditos. Não era mais necessário demonstrar uma ideia a partir do obra pronta: surgia o ambiente virtual de projeto para o desenvolvimento prévio das ideias. Multiplicam-se os tratados de arquitetura e de projetos urbanos.

Cidade renascentista: idealização nas artes plásticas
Cidade renascentista: idealização nas artes plásticas

O contraste com a irregularidade e adequação ao terreno das cidades medievais é extremo. O pensamento volta a ser o de submissão da realidade construída à racionalidade teórica prévia. Porém, ao contrário do que ocorria com a cidade hipodâmica ou com a cidade romana, o ideal de perfeição geométrica renascentista era radioconcêntrica.

Cidade renascentista
Cidade renascentista: exemplo de plano

Inicialmente concebida a partir de uma realidade medieval ainda em processo de substituição, os primeiros planos de cidades renascentistas ainda mantinham a estrutura militar de cercamento por muralhas, apenas com alguma sofisticação de desenho para sua defesa. A partir de diversas portas, as vias principais conectavam os acessos ao centro onde havia uma praça, cujas funções agora incluíam edifícios públicos com representatividade simbólica – começava a era das recém-constituídas nações europeias.

Apesar do desenvolvimento teórico de desenhos para cidades ideais, poucas cidades novas surgiram no período de 1500 a 1600, e as criadas tinham funções predominantemente militares. Isso ocorreu porque, ao longo de toda a Idade Média, a Europa formou e consolidou uma rede de cidades suficiente para a demanda demográfica de então. Assim sendo, o desenho renascentista acabou sendo aplicado mais em intervenções pontuais específicas, como sistemas de fortificações, modificações em trechos urbanos com a criação de espaços públicos, retificação e abertura de novas vias, e expansões urbanas em quadrículas regulares.

Cidade renascentista
Cidade renascentista

Observe que a cidade renascentista transformou o significado do espaço público, notadamente o das ruas, que deixou de ter uma razão de existir puramente funcional para adquirir atributos visuais simbólicos e decorativos, cênicos. Essa tendência se tornará mais aguda no período barroco, quando este cenário construído no sistema viário terá objetivos religiosos, para procissões, cortejos, etc.

O processo de consolidação do Renascimento se conclui no século 17, quando sua influência cultural já pode ser encontrada por todo o território europeu. A partir de então, arquitetura e urbanismo europeus entram definitiva e irreversivelmente numa nova era cultural e estética, cujos direcionadores racionais e de ordem só seriam abandonados no século 20, com o Movimento Moderno.

[1] LAMAS, José Maria Ressano Garcia. Morfologia urbana e desenho da cidade. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2000.

Leia também:

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