A cidade de Raymond Unwin

Todos os eventos que narramos até aqui (vide posts anteriores) levam a alguns momentos-chave de consequências no pensamento urbanismo ocidental. Um desses momentos resultantes ocorreu na Grã-Bretanha em 1909, quando uma série de variáveis confluíram para alguns importantes eventos, destacadamente a aprovação da primeira lei a tratar de planejamento urbano e a publicação de Town Planning in Practice, de Raymond Unwin.

Este último vinha também em decorrência do primeiro, pois Unwin teria colocado como um dos objetivos da publicação a orientação quanto à aplicação da nova lei. A publicação ganha rápida notoriedade internacional, e as sucessivas novas edições esgotam-se rapidamente, além de ganharem traduções para o alemão (1922), francês (1924) e mais tarde para o russo e o italiano.

Town Planning in Practice é um manual de projeto urbano, uma busca pela “boa forma da cidade” [1], no qual Raymond Unwin exibe uma de suas experiências com as primeiras cidades-jardim, o plano de Letchworth (1903), seguindo alguns dos princípios de Ebenezer Howard. José Lamas considera este um aspecto limitador do livro de Unwin, por associar-se demais às experiências de cidade-jardim de Letchworth e Hampstead, “em detrimento do Unwin urbanista talentoso e investigador, inventor de novas tipologias urbanas e capaz de abordar o projecto da cidade em toda a sua complexidade morfológica” [sic] [1, p.254].

A cidade de Raymon Unwin: Town Planning in Practice

Porém, Town Planning in Practice não deve ser confundido com um manual de aplicação da cidade-jardim, é muito mais do que isso. Aproxima-se mais de um compendium de desenho urbano recheado de material relevante até os dias atuais – e não apenas como registro histórico. Em seus capítulos iniciais, há uma explícita influência de Camillo Sitte, logo superada na sequência por uma crítica ao formalismo acadêmico classicista em favor de alternativas que respeitem mais o território, valorizando contrastes e surpresas desaparecidas desde a cidade medieval.

Para isso, Unwin exemplifica o debate (ainda contemporâneo) entre o desenho “regular” e o “irregular” a partir de uma seleção de trabalhos que inclui suas experiências pessoais. Suas defesas de traçados são apoiadas em esquemas gráficos oriundos de suas próprias experiências em Letchworth, Hampstead e Earthswick, cidades-jardins reais executadas por ele, algumas vezes em parceria com Barry Parker.

Esta mesma experiência também foi aplicada no Brasil, quando Parker e Unwin em pessoa desenharam bairros-jardim como o Jardim América, Pacaembu ou o Alto da Lapa em São Paulo (SP), por exemplo.

A cidade de Raymond Unwin: Town Planning in Practice

O modelo de cidade defendido por Unwin rompe com a cidade tradicional ao buscar uma nova relação entre o urbano e o bucólico. As relações entre via, lote e edificação são reformuladas de maneira a resgatar a residência unifamiliar ampla e cercada por área verde, a baixa densidade e a maximização da permeabilidade do solo (por motivos muito diferentes dos atuais para isso, diga-se de passagem). Unwin preocupa-se com a percepção humana do espaço construído sem descuidar do rigor sistemático e metodológico com que o faz, afastando-se da forma empírica adotada por nomes que o precederam.

Observe que Unwin soma-se aos urbanistas que rompem com o quarteirão fechado em sua periferia, o que viria a influenciar o desenvolvimento habitacional holandês das décadas de 1920 e 1930. Os britânicos, que nunca chegaram a aderir plenamente ao racionalismo radical moderno, absorve com facilidade as proposições de Town Planning in Practice, e influencia trabalhos que surgiriam muitas décadas depois a partir das mãos de Gordon Cullen, Nairn, Wolfe e Kevin Lynch.

Essa vertente cultural que viria a aportar com força nos Estados Unidos com a experiência de Radburn (1929), New Jersey, planejada para ser uma bucólica cidade para a “era do motor”.

Apesar de solenemente ignorado por diversos autores por muitas décadas, o modelo urbano de Raymond Unwin está mais vivo que nunca em diversos movimentos que já surgem com a pandemia da covid-19 (declarada em 2020 pela Organização Mundial de Saúde), mais de 110 anos após a publicação de Town Planning in Practice.

Fonte: LAMAS, José Maria Ressano Garcia. Morfologia urbana e desenho da cidade. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2000.

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A cidade de Raymond Unwin

Town planning in practice - Raymond Unwin

 

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22 comentários em “A cidade de Raymond Unwin”

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