A cidade experimental holandesa

A Holanda esteve na vanguarda da arquitetura e do urbanismo modernos de início do século 20 em diversas vertentes. Seus objetivos de política pública já eram incomuns na virada do século, e o caráter progressista de suas propostas só se acentuou pelas décadas seguintes, incluindo a priorização de questões sociais, a construção de habitação social em escala, industrialização da construção, o planejamento de longo prazo e a gestão territorial local.

Esse protagonismo virá em decorrência de, entre outros fatores, intenso investimento em pesquisa no setor, da habitação ao edifício, e deste à sua relação com a cidade. Além disso, a partir de 1896 o Estado holandês exerce forte interferência no mercado por meio da produção direta de habitação social, em geral para a locação, de forma a realimentar os cofres públicos para a construção de novos empreendimentos. São realizados investimentos em mecanismos de combate à especulação imobiliária, entre outras ações que incluem a compra sistemática de novas áreas para o desenvolvimento imobiliário estatal.

Em 1901, essa postura se consolida com a Lei da Habitação, a qual surge em conjunto com a concessões direta de crédito para municípios com mais de 10 mil habitantes desenvolverem seus planos, desapropriar áreas habitacionais insalubres e degradadas (coisa que não faltava na Holanda da época), adquirir lotes no mercado aberto e construir diretamente ou por meio de cooperativas e associações.

Cabe lembrar que estamos aqui falando de um país com desafios técnicos específicos, como a questão de ter boa parte de seu território implantado abaixo do nível do mar. Esse contexto gerou uma cultura nacional de alto nível de controle técnico no desenvolvimento urbano.

A partir desses elementos e neste contexto são realizadas grandes expansões urbanas, em especial as de Amsterdam, combinando a produção habitacional com o saneamento de áreas insalubres e o assentamento seguro de famílias que migravam para as cidades em decorrência da industrialização e do desenvolvimento econômico. Dois modelos são adotados nesse esforço: o da cidade tradicional de traçado regular e o de cidade-jardim, com a adição da superioridade hierárquica do sistema viário para a definição dos quarteirões.

A cidade holandesa: Amsterdam Sul
A cidade holandesa: Amsterdam Sul

É desta escola o plano de Berlage para Amsterdam Sul, de forte regulação do edifício pela quadra, e desta pelo viário, organizando três ordens de elementos:

  1. Lados e ângulos das quadras;
  2. A borda exterior das quadras;
  3. O tratamento dado ao interior das quadras.
A cidade holandesa: Amsterdam Sul de Berlage
A cidade holandesa: Amsterdam Sul de Berlage

O desenvolvimento do quarteirão holandês passa por diversas fases de evolução:

  1. Primeira Fase: criação de ruas de serviços que permite o acesso ao interior das quadras, conectadas à via pública por pórticos ou passagens cobertas que demarcam a transição entre público e semi-público ou semi-privado;
  2. Segunda Fase: a dimensão dos jardins privados, decorrentes da tradição holandesa de jardins aos fundos da case térrea, é reduzida em benefício do alargamento da rua interior, que se consolida definitivamente como espaço semi-público de convívio coletivo, áreas para jogos, jardins coletivos ou públicos. Este modelo se expande, conferindo o mesmo caráter ao interior das quadras, os quais passam a receber também equipamentos comunitários, como escolas, creches, bibliotecas, etc.;
  3. Terceira Fase: o modelo atinge o seu auge na década de 1930, quando um dos lados da quadra é liberado de edificações para abrir seu interior à permeabilidade da rua. Ou seja, o interior da quadra passa a ser um alargamento do espaço da rua, em geral ajardinado e público, enquanto a massa construída se organiza em “U” na periferia restante. No limite, o quarteirão desaparece completamente, e o espaço retangular descrito por quatro ruas é ocupado por blocos paralelos, ou até por um único bloco, como ocorreu no bloco de ateliês de artistas do Zomerdikstraad (1934), eliminando completamente a identidade do quarteirão tradicional.

Apesar de contemporânea à cidade europeia do entre-guerras a experiência holandesa ganha destaque por sua rápida evolução vanguardista claramente definida em direção às formas modernistas de desenvolvimento urbano, apesar de ter sido plenamente configurada sob os elementos da cidade tradicional. E é justamente nesta conjugação que reside uma de suas principais virtudes: e de proporcionar respostas efetivas aos problemas modernos mantendo os benefícios e vantagens da cidade tradicional.

Essa experiência prepara o terreno e virá a ser substituída, no período seguinte, pelo alinhamento da Holanda ao Movimento Moderno. Durante duas décadas, a experiência holandesa se manteve como modelo urbano de referência internacional, cujas propostas serviram de base às propostas dos CIAM e do urbanismo modernista: forte atuação pública na solução do problema habitacional, municipalização da terra, prioridade ao espaço coletivo público, transformação da morfologia construída tradicional e o rompimento com o quarteirão como era, até então, definido.

É muito provável que a experiência holandesa tenha sido a principal referência de rompimento com a cidade formal oitocentista burguesa (de privatização máxima do solo), e se consolidou como referência de vanguarda urbana ao propor também o rompimento do quarteirão, ideia esta abraçada pelo Movimento Moderno como um de seus princípios fundamentais.

[1] LAMAS, José Maria Ressano Garcia. Morfologia urbana e desenho da cidade. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2000.

Leia também outros textos desta série sobre Desenho Urbano:

A cidade hipodâmica
A cidade romana antiga
A cidade medieval europeia
A cidade renascentista
A cidade oitocentista europeia
A cidade utópica
A cidade de Hausmann
A cidade de Cerdá
A cidade do entreguerras
A cidade de Camillo Sitte
A cidade de Raymond Unwin
A cidade do formalismo francês
A cidade industrial de Tony Garnier
A cidade modernista
A cidade da moradia moderna
A cidade do zoneamento funcional
A cidade-jardim de Ebenezer Howard
A cidade dos CIAM
A cidade radiosa de Le Corbusier
A cidade austríaca dos Hoffs
A cidade experimental holandesa
A cidade alemã de Ernst May
A cidade operacional do pós-guerra

Leia também:

Competicidade: como as cidades competem entre si e por que isso pode ser bom

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5 comentários em “A cidade experimental holandesa”

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