A tríade vitruviana no século 21

Marcus Vitruvius Pollio é autor de um dos mais antigos tratados ocidentais de arquitetura e urbanismo a chegar a nossos dias. De Architectura, escrito em 10 volumes, levou mais de uma década para ser concluído (foi publicado aproximadamente no ano 16 a.C.) e trouxe o princípio de três pontos que inspirou muitos textos do Renascimento, alguns muito influentes até a atualidade.

Os três pontos da tríade vitruviana – utilidade (utilitas), beleza (venustas) e estabilidade (firmitas) não deixaram de estar presentes, apenas são lidas hoje num contexto muito diverso do original da época em que o tratado foi escrito. Mais do que isso, muitas novas preocupações são adicionadas a cada um dos três pontos, levando em consideração o entendimento da edificação como um sistema inserido em um ambiente complexo, com trocas e realimentações constantes.

Utilidade

Muito além de um levantamento estático de programa de necessidades calcado num momento histórico único, a flexibilidade da edificação, permitindo alterações a baixo custo para demandas que ainda não existem, é exigência atual para a longevidade do edifício. Exemplo máximo é o do uso residencial, considerada a constante mutação da composição e tipos de famílias: a tradicional família nuclear dos anos 1950 (em constante declínio quantitativo) dá espaço para maior participação da mulher como protagonista social (vide gráfico abaixo), famílias unitárias (uma única pessoa, como viúvos, divorciados, estudantes, solteiros convictos, etc.), casais sem filhos (casais DINK double income, no kids), uniões homossexuais, habitações coletivas, e por aí afora. A despeito deste fato, a indústria imobiliária ainda não incorporou o fato em seus projetos, e continua ofertando apenas imóveis de baixa qualidade padronizados para a família nuclear (pai + mãe + filhos), exigindo que o comprador faça adequações para seu uso.

É necessário que o produto atinja o maior número possível de pessoas de forma cidadã, o que se traduz, por exemplo, nas atuais exigências de desenho universal e acessibilidade.Não significa o desenho para um público específico, e sim um desenho que tenha utilidade para todos.

Também são consideradas as relações custo x benefício, as quais vão muito além do aspecto financeiro. Custos psíquicos, de tempo, de conflitos, etc. são confrontados a benefícios de versatilidade e adaptabilidade, o que leva a geração Y a valorizar muito mais as experiências que as propriedades – preferem alugar a comprar um imóvel. Esta mudança, por si só, altera profundamente a concepção de produtos, pois o adquirente (proprietário) não será o usuário (locatário), e a versatilidade passa a ser um atributo de ouro.

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Beleza

Sem falar na mudança de padrões estéticos da sociedade, ainda há muita a se dizer sobre outros fatores de forma, em especial aos associados aos processos de produção. Por diversos motivos (inclusive pelos acima citados, no que tange à exigência do mercado), existe forte necessidade de customização de produtos. E, pelo lado da produção, a evolução tecnológica tem permitido uma customização tão profunda que chega ao limite do one to one (feito quase que sob encomenda). Exemplo são os carros da Tesla. Padrões culturais atuais e regionalizados misturam-se à globalização, influências culturais massificadas, telecomunicação em tempo real, conectividade global, redes sociais e formam um momento único em termos de exigências e interpretações da forma física. Sem falar num momento de pós-modernidade tecnologicamente tão avançada que coloca representações virtuais como referências para a reprodução do real.

Estabilidade

Deixar um edifício fisicamente em pé não é segredo há séculos. Mas deixar o empreendimento edifício estável em todas as suas dimensões (econômica, social, cultural, etc.) é cada vez mais difícil. Numa época em que a própria existência humana se torna cada vez mais instável e volúvel, o nomadismo urbano é crescente, e a colocação do edifício enquanto objeto transacionável na sociedade de mercado passa a ser um desafio. Condomínios antigos cujas edificações físicas não possuem sequer uma trinca podem ter programas de necessidades ultrapassados e restringirem as possibilidades de modernização de sua gestão a ponto de reduzirem seu valor de mercado a um nível tão baixo que passa a ter valor negativo. Explico: o valor de mercado do terreno é maior que o do terreno com a edificação, pois para seu aproveitamento econômico eficiente, seria melhor que nenhuma edificação ali estivesse, e os custos de demolição e remoção de entulho desvalorizam o conjunto. Com isso, o empreendimento fica suscetível ao mais simples abandono e invasões de sem teto. Se não acredita, recomendo uma visita aos centros históricos das grandes cidades brasileiras.

O trabalho de Vitrúvio, longe de estar obsoleto, deve ser visto em sua forma mais ampla, contemplando as necessidades e desejos da vida urbana contemporânea – e ficará evidente que seguir aos princípios dessa tríade é um desafio muito maior do que pode parecer à primeira vista. E exigir do arquiteto conhecimentos e técnicas dos quais temos nos esquivado por séculos.

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2 comentários em “A tríade vitruviana no século 21”

  1. Não concordo de forma absoluta com a ” obsolescência” das construções antigas nos centros das grandes cidades. Dada a desqualificação construtiva e sub dimensionamento das novas unidades habitacionais( por exemplo), as construções antigas se apresentam como potencial positivo para sua ocupação e,portanto manutenção…Isto sem falar na preservação das memórias!

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    1. Prezada Vera,

      Concordo plenamente com você quanto ao valor cultural dos centros e das construções antigas. Se você navegar um pouco pelo blog, vai encontrar alguns textos meus de apoio nesse sentido.

      Porém, quando cito os centros neste texto específico, estou falando do aspecto de avaliação ativo para finalidades como garantia real à obtenção de crédito (que pode inclusive ser para o restauro do patrimônio) – aliás, eu nem uso a palavra “obsolescência” para os centros, apenas num comentário sobre as obras de Vitrúvio.

      Infelizmente para nós, que somos entusiastas da preservação, muitas vezes esse crédito não é viabilizado porque a depreciação (imobiliária, não a cultural) do ativo é tão grande, que aos olhos do credor se torna um passivo, e deixa de existir a garantia do empréstimo. Culpa dos bancos? Talvez. Culpa da educação deficiente? Com certeza.

      Atenciosamente,

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