
Até as primeiras décadas do século 20, não havia qualquer política habitacional de Estado no Brasil. Ainda que estivéssemos sob influência de modelos urbanos europeus, as iniciativas habitacionais de Estados liberais não foram por aqui reproduzidas. Os exemplos mais emblemáticos do norte da Europa, como os holandeses, não foram importados. Em nossa estrutura socioeconômica oligárquica e agroexportadora, e distribuição populacional predominantemente rural (até a década de 1950), as políticas urbanas seguiam um modelo nacional de não intervenção, confiando na capacidade da “mão invisível” do mercado em se auto-regular, principalmente antes da crise de 1929.
Assim sendo, as iniciativas estatais pontuais que surgiram para solucionar os frequentes problemas de epidemias de febre amarela causadas pela aglomeração de trabalhadores em habitações precárias, insalubres e com condições sanitárias extremamente degradantes limitaram-se a oferecer incentivos à iniciativa privada para a ampliação da oferta de habitação, como os incentivos à construção de vilas operárias. Quase sempre tais incentivos tiveram pouco efeito no problema e termos agregados, quase não produziram elevação da oferta, enquanto a demanda explodia em centros urbanos que se industrializavam rapidamente.
Numa época em que a regra era a habitação alugada (as políticas habitacionais da casa própria ainda não tinham aparecido), existiam as mútuas de previdência de trabalhadores urbanos, pois também não havia ainda a previdência estatal. Tais mútuas, em busca de rentabilidade a seus fundos de pensão, produziram conjuntos habitacionais rentistas em nossas principais capitais. Porém, ainda em número muito reduzido frente ao déficit habitacional, sem comentar que não havia qualquer subsídio ao locatário, recortando essa oferta a uma faixa mínima de renda. Os operários e excluídos na base da pirâmide social ainda estavam relegados aos cortiços insalubres e cada vez mais populosos, agravando exponencialmente as crises de saúde pública.
Com o Estado Novo (1937), surgiu o pacto tripartite de desenvolvimento econômico de base no país, a partir de esclarecimento de regras e relações entre Estado, investidor privado nacional e trabalhadores (em especial os urbanos). Desta época data a organização sindical, cujo modelo estrutural de base se mantém até os dias atuais. Ainda que o Estado nacional não intervisse diretamente na oferta habitacional, foi mais incisivo nessas políticas (inclusive com incentivos financeiros diretos) por duas vertentes:
- Organizou as mútuas em Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAP) por setor econômico
- Promulgou do Decreto-Lei 58 (1938), o qual regulamentava a venda de lotes a prestações
Os IAPs, em especial o dos industriários (IAPI) produziram conjuntos habitacionais de elevada qualidade, reconhecidos como importantes referências urbanas até hoje, multiplicando a capacidade de oferta das antigas mútuas. Isso ocorreu principalmente porque algumas grandes categorias de trabalhadores estavam organizadas em IAPs únicos, potencializando suas capacidades de formação de poupança para investimento.
Porém, grande parte dos trabalhadores não organizados em categorias formais de IAP, além de grandes contingentes urbanos excluídos do emprego formal não estavam contemplados pela possibilidade de se beneficiarem da produção dos IAPs. Além disso, a disparada das taxas de inflação nos primeiros anos da Segunda Guerra Mundial (a substituição de importações só viria em resposta a isso) gerava grandes insatisfações urbanas pouco controladas pela Lei do Inquilinato de 1942. Esta pressão, além de exemplos que começavam a surgir em países vizinhos da América do Sul, resultou num tímido primeiro movimento Estatal brasileiro em produção direta: a Fundação da Casa Popular – FCP (1946). A década de 1940 se consolidava como o ponto em que a sociedade reconhecia a falta de capacidade da iniciativa privada em equacionar a questão habitacional no país.
O pós-guerra foi um importante ponto de inflexão na realidade urbana brasileira: a televisão trazia modelos norte-americanos em substituição aos europeus, a substituição de importações diversificava nossa economia, a aceleração da industrialização nacional aumentava a proporção da população urbana, as grandes cidades viam o vertiginoso crescimento de edifícios em altura para fins residenciais, e em poucos anos a Guerra Fria tomaria conta das preocupações da geopolítica internacional. Foi a época de crescimento das ocupações não-industriais nos centros urbanos, muitas das quais não estavam cobertas por nenhuma categoria de IAP. E a FCP não tinha fôlego para uma resposta a estes setores. Desta época data o primeiro ciclo de aceleração no surgimento de favelas no município de São Paulo, por exemplo.
A solução só veio em 1964, quando o recém-instaurado regime militar converteu os IAPs em duas grandes instituições que viriam a desenhar os contornos institucionais brasileiros durante os anos em que o país recuperaria boa parte de seu atraso econômico em relação a seus pares de comparação direta. Falo do Instituto Nacional de Previdência Social – INPS (que assumiu o papel previdenciário dos IAPs) e do Banco Nacional da Habitação – BNH, responsável por um dos esquemas de financiamento habitacional mais inteligentes do mundo, o qual viria ser copiado por diversos países, entre eles o México.
A inteligência vinha de um arranjo baseado na contribuição compulsória do trabalhador a um fundo semi-público, o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS. O fundo possui, até hoje, regras rígidas para saque dos recursos pelo titular, cujas três principais saídas são:
- aquisição da casa própria, pois desde a década de 1930 o país fortalecia as políticas habitacionais de propriedade
- desligamento do emprego (interrupção de contribuições)
- aposentadoria (fim do período contributivo)
- O fundo também remunera este capital a taxas reduzidas em relação a outras oportunidades financeiras, formando uma poupança considerável para o investimento em habitação e obras de saneamento. Este processo passou a gerar um ambiente de crescentes investimentos em infraestrutura, a baixo custo de remuneração do capital, que também estimulava a contratação de trabalhadores formais e a hipoteca de longo prazo, retroalimentando o sistema.
A grande crítica aos conjuntos habitacionais do BNH era a de produção maciça, monótona, repetitiva, de conjuntos habitacionais de baixa qualidade (tanto de projeto quanto de execução da obra) em periferias afastadas, elevando os custos de transporte do trabalhador e a demanda por investimento público em infraestrutura e equipamentos públicos e comunitários.
Este desenho, associado a outras políticas de Estado permitiram o grande salto de crescimento econômico dos anos 1970 (Milagre Brasileiro). Funcionou bem até a Crise do México de 1982, que se traduziria por aqui em nossa Crise da Dívida Externa e o período de hiperinflação. Em 1986, o BNH já era insolvente por diversos motivos, entre os quais se inclui a leniência do judiciário quanto à inadimplência de hipotecas, principal elemento de insegurança aos investimentos privados em habitação. O investidor privado concentrava-se, cada vez mais, nos mercados mais seguros: de média e alta rendas.
Mesmo com a criação do Sistema Financeiro da Habitação e a regra de percentual mínimo de Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo (SBPE) a ser aplicado em habitação, a oferta decrescia em descompasso alarmante frente ao déficit urbano que não parava de crescer. O Milagre Brasileiro havia dado novo impulso à concentração populacional urbana que não tinha uma política habitacional vultosa que a acompanhasse. As décadas de 1980 e 1990 viram então mais um ciclo de aceleração do processo de favelização urbana.
Novo impulso só viria com o Minha Casa Minha Vida (MCMV), uma combinação do Programa de Arrendamento Residencial – PAR, cujo fundo (FAR) foi utilizado por um programa nacional de aliança entre investidores, municípios e Governo Federal para a produção de habitação subsidiada para as faixas de renda mais baixas (de zero a três salários mínimos). Era a primeira vez que um programa estatal contemplava objetivamente a base da pirâmide social.
Um reforço a outra camada imediatamente desatendida veio poucos anos depois, com a retomada de uma ideia antiga: o funding promovido pelo FGTS para Habitação de Mercado Popular (HMP). Essa ideia funcionou bem porque havia surgido um novo instrumento jurídico que dava maior segurança ao investidor em substituição às hipotecas: a alienação fiduciária. Com menor risco, caía o custo de capital, portanto caiam as exigências de retorno do investimento privado. Resultado, a oferta disparou, e o país viu um boom imobiliário sem precedentes, potencializado pela entrada na China na Organização Mundial do Comércio, cuja disparada econômica demandava quantidades estratosféricas de commodities no mercado internacional – justamente as principais ofertas da América Latina ao planeta. Brasil e vizinhos viram novo ciclo de forte crescimento econômico do bloco.
Por outro lado, o MCMV continuava a produzir conjuntos habitacionais com os mesmos problemas do BNH: extremamente afastados, consumindo a vegetação das periferias, ampliando a expansão das manchas urbanas brasileiras, pressionando os custos de transporte de trabalhadores e demanda por infraestrutura e investimentos em equipamentos públicos e comunitários. Além disso, a partir dos anos 2000, estava presente uma nova crítica que o BNH não tinha conhecido: a dos impactos ambientais causados pelas políticas expansionistas urbanas, principal discurso de Al Gore nos EUA que alcançaram todo o planeta.
Além disso, mesmo com a imensa e inédita produção habitacional do MCMV, o déficit habitacional brasileiro se mantém, pois a oferta gerada pelo programa acabou por atender apenas ao acréscimo produzido pelo crescimento econômico do país no período. Em termos absolutos, o patamar de déficit não apenas se manteve, mas continuo a crescer.
Adicionalmente, é importante observar que a Constituição de 1988, ao ampliar os direitos sociais, demanda um volume de despesas estatais que teve o efeito de estancar o investimento em infraestrutura no país, agravando ainda mais as consequências do modelo.
O último capítulo dessa história veio com iniciativas pontuais a partir dos anos 1990, em geral municipais, de aproveitamento de imóveis abandonados em centros históricos de grandes cidades (combinadas com programas de revitalização), iniciativas de imóveis para locação frente a uma nova demanda (Geração Y e millenials) por maior flexibilidade de deslocamentos pelo território associada à rejeição aos inconvenientes da propriedade, e experiências com projetos urbanos de alta qualidade por meio de estudos específicos a cada localidade (como fez o município de São Paulo nas duas primeiras décadas do século 21).

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