Pensamento urbanístico contemporâneo

Várias das atuais correntes predominantes no pensamento de base ao planejamento urbano internacional tiveram origens nos anos 1980 e 1990. Um dos principais motivos para isso foi o forte impulso dado pela tecnologia da informação à criação do atual contexto socioeconômico global. Entre outros elementos, as taxas de lucro das empresas dominantes cresceram, a internacionalização se acelerou a níveis inéditos, e, em decorrência, surgiram novas agendas políticas por parte dos governos. A geografia regional e urbana apresenta divisões espaciais do trabalho cada vez mais nítidas, as funções de produção foram descentralizadas pelo globo de forma extremamente flexível, enquanto as indústrias informacionais se concentraram em alguns poucos centros urbanos inovativas, como o Vale do Silício. Estes últimos, cristalizados como os centros propulsores da economia capitalista contemporânea, centralizam cada vez mais o poder de decisão de alto nível.

Manuel Castells considerou que o processo reestruturador das décadas recentes objetivava substituir lugares por redes de fluxos de informação fora do controle humano, introduzindo uma era de desconfortável coexistência de feitos extraordinários com a ampla desintegração de grandes segmentos sociais. Observação harmônica a esta também encontramos em Saskia Sassen, quem observa que a atividade financeira internacional se concentra, cada vez mais, em poucos países e cidades. Emergem, neste ambiente, as cidades globais como implantações-chave para o desenvolvimento de serviços inovadores. Nelas, concentram-se os grandes bancos e a indústria globalizada de serviços.

Nos anos 1980, os serviços financeiros viraram, efetivamente, mercadorias. Comprar e vender instrumentos financeiros passou a ser, a partir de então, um fim em si mesmo. Com isso, surgiu a nova divisão internacional do trabalho baseada nos processos, e não mais nos produtos. Se uma atividade puder ser executada a menor custo pela descentralização, isso fatalmente ocorrerá (que o diga a intensa industrialização chinesa após 2000). Parte deste fenômeno foi o rebaixamento ou até eliminação de barreiras à livre circulação de mercadorias e serviços, o que ficou marcado como maior expressão da globalização.

Com o avanço tecnológico, os custos de telecomunicações sofreram imensa queda, tornando-se até irrisórios em alguns meios. A informação passou a circular por todo o globo de forma instantânea e sem esforço. A partir dos anos 1990, a internet avançou exponencialmente, zerando as tarifas de trânsito de informações a longas distâncias. Entretanto, paradoxalmente, isso provocou maior atração de pessoas e recursos a algumas poucas cidades-chave, onde informação especial é intercambiada e partilhada. A polarização resultante não foi apenas entre cidades, mas dentro das próprias cidades-chave, surgindo fortes contrastes de padrões de renda e de estilos de vida.

Da perspectiva dos recessivos anos 1980, a pergunta que se fazia era o que um dia poderia reerguer as economias urbanas. Um dos poucos consensos que havia era o de que aquele cenário não se repetiria, e os serviços financeiros provavelmente (na visão da época) seriam substituídos por novos setores, como as artes, o entretenimento cultural, os serviços de educação e saúde, ou o turismo. Com a chegada dos anos 1990, surgiram novos livros, campeões de vendas, difundindo o novo evangelho da tecnologia, dos quais A estrada do futuro (Bill Gates), A cidade dos bits (Bill Mitchell) e A vida digital (Nicholas Negroponte) são exemplos emblemáticos.

Os planejadores de então se perguntavam sobre o impacto desse novo mundo sobre as cidades. Uma ideia que surgiu na época (e que pode ganhar nova força após a pandemia de 2020) foi a de que o livre fluxo de informações acabaria com a necessidade de cidades, pois qualquer um poderia exercer qualquer atividade em qualquer lugar, desde que as conexões digitais adequadas estivesses disponíveis. Exemplos que vieram à mente foram o ensino à distância substituindo as universidade tradicionais (algo que tem ocorrido em certa proporção), o comércio eletrônico substituindo o viva-voz de chão em Bolsa de Valores (o que já ocorreu há anos) e até cirurgiões operando pacientes de suas casas a grandes distâncias (que já há notícias de ocorrências pontuais). porém, na época, as evidências ainda eram contrárias a esta tendência, reforçavam que a cidade como espaço de congregação e interação estavam longe de morrer. Eram ainda campi de acesso a informações privilegiadas.

O resultado desse contexto foi a crescente ênfase das políticas urbanas a procedimentos altamente competitivos, inovadores e orientados à recuperação urbana. O Reino Unido, por exemplo, fomentou a competição entre cidades por fundos públicos. Tinha suas vantagens: gerou entusiasmo de governos locais, criou alguns esquemas de alta qualidade, e permitiu a aplicação dos fundos em esquemas importantes, por exemplo. Mas os críticos continuaram denunciando o “artifício colorido” que mascarava os cortes de investimento, desses mesmos fundos, dos programas de recuperação estrutural.

Outro tema que ganhou tração na década de 1990 foi o desenvolvimento urbano sustentável. Porém, apesar de todos serem a favor dele, ninguém sabia traduzir de forma pragmática o que significava. A definição de sustentabilidade do Relatório Brundtland de 1987 foi reproduzida à exaustão: “desenvolvimento que vem ao encontro das necessidades presentes sem comprometer a capacidade das gerações futuras em prover suas próprias necessidades e aspirações”.

Mas isso não indicava como se concretizariam em decisões cotidianas, apesar da facilidade em se identificar os objetivos gerais:

  • desenvolver formas de construção que conservem energia e minimizem emissões de poluentes
  • encorajar acessibilidade sem mobilidade, especialmente sem a necessidade de transporte mecanizado
  • incentivo ao deslocamento a pé ou de bicicleta
  • desenvolver o transporte público e desencorajar o uso do carro individual
  • desenvolver novas formas de propulsão que poluam menos e economizem mais energia que os motores de combustão interna

Em 1989, dois planejadores australianos (Peter Newman e Jeffrey Kenworthy) que os habitantes de cidades norte-americanas consumiam muito mais energia que os europeus. A diferença essencial vinha da preferência dos europeus pelo transporte público em cidades mais densas (de onde vem o conceito de cidade compacta).

Mas não era tão simples: mesmo a proposta de cidades satélites ligadas por transporte coletivo de alta capacidade na Estocolmo de Markelius e Sidenbladh não estavam eliminando a tendência de crescimento no número de deslocamentos com automóvel. especialistas em transporte estavam observando também que a grande maioria das viagens não era para o trabalho, mas para outros lugares e por outros motivos. Com isso, as políticas de uso do solo passaram a ter limitada capacidade de influência sobre os meios de locomoção.

Outra surpresa alarmante veio da constatação, em meados da década de 1990, do surpreendente aumento do número de novas casas por toda a Europa, apesar de não ter havido aumento populacional em mesma magnitude. O fato veio como resultado da fragmentação das famílias, gerando um número maior de lares, ainda que estes surgissem menores em área individual. Aumentava o número de solteiros, pessoas morando sozinhas, universitários, separados, divorciados, idosos viúvos, entre outras novas modalidades de núcleos familiares. Com isso, onde havia planejamento de limitação territorial das cidades (como a Inglaterra), a demanda de novas moradias começou a não caber mais nas cidades existentes, ainda que a população não crescesse de forma compatível. Isso apontava para a necessidade de se construir maciçamente em áreas verdes, contrariando as diretrizes do desenvolvimento urbano sustentável, acima apontados.

De lá para cá, essas grandes linhas mestras têm se mantido com notável persistência. As contribuições de anos recentes vieram muito mais em linhas de evolução e reforço dessas preocupações do que em sinais de redirecionamento de caminhos. Com a revolução digital, a sociedade parece ficar mais transparente a cada dia, permitindo ao cidadão fazer controles e acompanhamentos diretos das políticas públicas urbanas. Mas as questões críticas das cidades parecem se manter, desconfortavelmente, muito similares às de muitas décadas atrás.

 

Fonte: HALL, Peter. Cidades do amanhã: uma história intelectual do planejamento e do projeto urbanos no século XX. São Paulo: Perspectiva, 2013. p. 475-495.

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