Teletrabalho e a era das cidades médias

Estas palavras são escritas em plena pandemia de 2020, de forma a ser ainda cedo para delinearmos com nitidez suas consequências. Ainda assim, algumas tendências se sobressaem, e já é possível algum vislumbre de cenários futuros. Uma dessas tendências diz respeito à geolocalização dos cérebros. Explico: a preocupação em relação à localização de pessoas de alta qualificação e elevada produtividade já é uma preocupação de governos há décadas. Em geral, o preparo (educação formal e informal, treinamento, apoio ao desenvolvimento profissional) consome uma quantia considerável de investimentos, os quais, independentemente de quem tenha financiado de fato tal preparo, decorre do consumo de recursos de uma dada economia. É, portanto, um investimento social, ainda que indireto.

Aliado a isto, até 2019, antes da atual pandemia, uma clara tendência do urbanismo internacional era a defesa das cidades compactas – e provavelmente boa parte desse pensamento persistirá, mas com algumas revisões. Esta linha de pensamento está pautada sobre o combate ao espraiamento urbano (urban sprawl), que espalha a cidade para periferias cada vez mais distantes, eliminando áreas verdes, degradando ambientes naturais, comprometendo recursos naturais, segregando fisicamente populações socialmente excluídas, gerando mais emissões de carbono na atmosfera pelo ultrapassado transporte a combustão, exigindo do poder público ineficientes investimentos em mais transporte, mais equipamentos urbanos e comunitários distantes, mais gastos com manutenção de vias de ligação, entre outros malefícios. Infelizmente, essa ainda continua sendo a lógica, por exemplo, dos programas habitacionais de propriedade, como o Minha Casa Minha Vida (nós já apresentamos aqui uma proposta de alternativa viável baseada no aluguel social, o Programa MAIS).

Defender cidades compactas significa priorizar o adensamento urbano, aproveitar melhor a infraestrutura já instalada (e que teve alto custo social para isso em algum momento da história), ocupar e revitalizar os centros urbanos que se degradaram nas últimas décadas, preferencialmente seguindo os preceitos de usos mistos como forma natural de vida urbana segura, conforme defendido por Jane Jacobs em seu icônico livro Morte e vida de grandes cidades. Fazer isso significa promover, ao mesmo tempo, maior justiça social por abrir acesso mais democrático à cidade, valorizar nosso patrimônio construído e preservar recursos naturais. Parece que só políticos não gostam dessa ideia, talvez por eliminar o potencial domínio dos currais eleitorais.

Então chegou a pandemia de 2020, e a evidência do que todos já sabiam: o atual nível tecnológico e de telecomunicações definem que o trabalho intelectual não precisa mais ser geolocalizado. Pelo menos não precisa ser fisicamente próximo à sede do empreendimento vinculativo, em geral, por relações trabalhistas. Após meses de ampliação global do trabalho remoto, inúmeras empresas já começam a convertê-lo em práticas permanentes. As vantagens trazidas pela densidade, aglomeração e proximidade das grandes cidades foram repentinamente contrabalançadas pelos altos custos impostos pelos mesmos elementos em cenário de crise pandêmica. O ponto ótimo de proporcionalidade entre aglomeração e afastamento se modificou rapidamente, e o cenário futuro quanto a maiores ou menores vantagens entre cidades grandes ou pequenas dependerá do quanto as atuais práticas sociais se consolidarão, ou não, na era pós-pandemia.

O mais provável, como sempre, é que fiquemos em algum ponto entre dois extremos: o mundo não voltará a ser como era antes, mas também não espere por uma imediata mudança radical nos costumes – ou nos contratos de trabalho. Provavelmente, o ano um após a superação da atual crise de saúde será o início do processo de convergência para a proporção mais favorável entre benefícios e custos do espaço urbano. E, certamente, levará (já levou) a um forte crescimento dos contingentes de trabalhadores de alta qualificação e produtividade (sim, aqueles mesmos de preocupação dos governos) em regimes de teletrabalho.

Acontece que estes trabalhadores tendem a ser os mais remunerados, com maior nível de educação e consciência cidadã, e com maior potencial de reprodução do capital. Ou seja, é a população urbana mais desejada por qualquer gestor público que se preze. A desvinculação física deste contingente de seus locais de trabalho permite a livre escolhe de onde preferem morar. E, nesta avaliação da relação entre benefícios e custos da localidade residencial, certamente a memória da pandemia estará presente. Além disso, a condição permanente de trabalhar em casa incentiva maior investimento neste novo ambiente de trabalho. E os custos das grandes cidades são obviamente maiores, sejam em terrenos ou em área construída.

Este cenário configura uma grande oportunidade iminente para as cidades médias, em especial aquelas que exibem invejáveis indicadores de qualidade de vida, e só não atraíam (até agora) tantos cérebros quanto o desejado por limitada oferta de empregos geolocalizados – justamente o que tende a se modificar, pelo menos em parte, num futuro próximo. E existe um grande número de municípios com estas características no Brasil.

Esta tendência de mudanças, como sempre, traz vários riscos, para os quais os gestores públicos precisam se preparar. Nas grandes metrópoles, o risco é de perder parte de seu ativo populacional e empreendedor mais valioso, e ficar com o mais custoso aos cofres públicos. Isso poderia prejudicar vários aspectos urbanos, desde a segurança pública até os fiscais. Várias áreas urbanas do país já passaram por isso, muitas delas de forma traumática. Aguçar essas tendências pode vir a se tornar um grande problema.

Pelo lado das cidades menores, também há riscos. Ainda não se sabe se haverá mesmo esse tipo de migração, e, se houver, nenhuma pista sobre sua magnitude. Talvez a característica cultural gregária e de relações sociais consolidadas do brasileiro limite esse fenômeno, e leve mais à tendência de bairros mais autossuficientes dentro das metrópoles, por exemplo. Pode ser.

Mas também pode acontecer o contrário, e haver a migração crescente e rápida de grandes contingentes populacionais para cidades despreparadas para recebê-los. E isso pode levar alguns problemas das grandes metrópoles, como o próprio espraiamento urbano, para as cidades menores – sem falar em inúmeras outras questões, que incluem a identidade cultural local.

Aguardemos. Mas o ideal é fazermos isso de forma ativa, com algum grau de preparação para novas realidades urbanas. Algo difícil de se pedir para nossas prefeituras sobrecarregadas de demandas das mais diversas ordens, e com condições fiscais cada vez mais restritas.

Veja mais:

Competicidade: como as cidades competem entre si e por que isso pode ser bom

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