Comecei a trabalhar com habitação social em 2002. Na época, a carência de recursos para o setor era entendida quase que como característica intrínseca, e havia uma predominância de entendimentos de que deveríamos fazer o possível, atuando das situações mais críticas com o pouco recurso disponível. Essa linha de entendimento levava a ações que ficaram conhecidas como “urbanização de favelas”. O que se fazia era levar redes de energia elétrica (oficial), água e esgoto a casas de autoconstrução precárias e insalubres.
O problema maior, a meu ver, é que as tais “urbanizações de favelas” não agiam sobre as casas! É isso mesmo, eram ações “habitacionais” que não tinham absolutamente nenhuma ação sobre as moradias em si. Não consigo entender como esse tipo de ação urbana possa ser caracterizada, stricto sensu, como habitacional.
Outro fato que logo veio a meu conhecimento e que certamente causa mais espanto frente ao contexto foi descobrir que a urbanização de favela não é uma ação tão econômica quanto se fazia parecer. Alguns colegas da prefeitura onde eu trabalhava me mostraram os reais custos de urbanização de algumas comunidades que estavam em curso havia mais de uma década, e os custos não eram muito distantes do que posteriormente vimos nos modelos do Minha Casa Minha Vida. Pior: gastavam quase o mesmo sem agir, em nada, sobre as moradias que continuavam precárias e insalubres.
No momento seguinte vimos a proliferação do modelo Minha Casa Minha Vida nas periferias das cidades. Inegavelmente superiores às urbanizações de favelas em qualidade, dessa vez os maiores problemas passaram a ser os urbanos: o modelo do programa federal incentivava a construção de conjuntos habitacionais densos além nas periferias urbanizadas, nos extremos das franjas urbanas. Ou seja, a população mais carente tendia a ser deslocada para áreas onde não há equipamentos coletivos (escolas, creches, postos de saúde, comércio, serviços etc.), o que gerava novas demandas de investimentos aos parcos recursos públicos municipais. Além disso, essa população tendia a ser alojada em pontos distantes de seus trabalhos, pressionando as esgotadas infraestruturas de transporte das médias e grandes cidades brasileiras, além de eliminar áreas verdes dos cinturões urbanos e gerar mais emissões atmosféricas de transportes urbanos.
O resultado do Minha Casa Minha Vida até 2018 foi, dessa forma, ambíguo. Apesar dos inegáveis e imensos benefícios sociais proporcionados em termos de habitação, gerou também um novo conjunto de comprometimento de tesouro público aos municípios, além de suas externalidades negativas socioambientais.
No atual momento histórico, o Minha Casa Minha Vida retorna com abertura a novos modelos e aparentemente disposto a retificar alguns erros do passado. Neste contexto, reforço aqui uma urgência à questão habitacional brasileira: a necessidade de viabilizar habitação social em regiões urbanas bem dotadas de infraestrutura, e isso passa pelo adensamento residencial nos centros urbanos e pela recuperação de edifícios antigos para uso habitacional (retrofit).
Esse último elemento, no atual contexto, não tem mais como maior dificuldade a ausência de investidores interessados. A cada dia, mais desenvolvedores imobiliários se debruçam sobre a questão com a intenção de investir num novo mercado que, mais dia, menos dia, necessariamente se desenvolverá.
Nesse sentido, cabe aos municípios retirar uma das maiores travas ao retrofit: o engessamento das regras e normas edilícias de reaproveitamento de imóveis antigos como se fossem novos. É impossível fechar a conta da adequação desses edifícios antigos às regras atuais de códigos de obras e regras de corpo de bombeiros como se fossem edifícios novos. Precisamos de um novo paradigma habitacional que contemple regras específicas ao retrofit. Caso contrário, uma imensidão de edifícios antigos em centros urbanos e regiões ricas em infraestrutura continuarão vazios, fechados e abandonados, sem cumprir com sua função social. E talvez venham a ser invadidos, caracterizando ainda mais o status de precariedade urbana.