Quando eu era pequeno, tive uma conversa com meu avô que só vim a compreender há pouco tempo. Conversávamos, caminhando pela praia num suposto dia tranquilo, sobre algo que nos preocupava naquele momento – não vou lembrar exatamente qual era o assunto, mas suponha que fosse a inflação da época. De repente, do nada, meu avô começou a falar de Hitler. Eu não entendi o motivo dele ter mudado de assunto tão repentinamente. E continuava no mesmo tom de voz, como se aquela tivesse sido nossa conversa desde o início. Se você tiver menos de 90 anos de idade, provavelmente não vai entender enquanto não se colocar no lugar de uma pessoa de geração dele. Para nós, Adolf Hitler é mais ou menos tão real quanto Julio Cesar, Ivan IV, Gengis Khan ou Josef Stalin. Habita livros e aulas de história, e tem a mesma personificação tangível (ou até menos) que Darth Vader.
Mas não é assim para quem viveu aquela época. É difícil para nós imaginar o que era ver amigos e conhecidos morrendo aos montes, saber que o mundo estava se destruindo num conflito crescente que se expandia pelo globo sem qualquer perspectiva do que seria o futuro, ou se haveria algum. A Segunda Guerra foi, para eles, algo muito diferente de filmes ou jogos de videogame. Era a navalha na carne, perigo real e imediato. Até que um dia o conflito acabou, os sobreviventes superaram, adentraram a um novo mundo e carregaram essa cicatriz pelo resto de suas vidas. Para a geração de meu avô, Hitler se encaixaria bem em qualquer conversa sobre algo preocupante, e duvido que algum contemporâneo discordasse dele.
Agora chegou a nossa vez. Nossa geração vive, com a covid-19, nenhuma segurança do que será o futuro, novas cepas cada vez mais perigosas de um vírus mortal se multiplicando onde o isolamento social é mais brando, vacinas sendo superadas por variantes de um microorganismo complexo, infinitas consequências econômicas nas rendas de milhões de famílias que tentam sobreviver em ambientes sociais de profundas e repentinas transformações. Hoje é outra navalha cortando a carne da humanidade, amanhã será a nossa cicatriz.
Somos uma coorte, há um um fato retumbante que nos une em torno de um único evento do qual nunca nos esqueceremos. Não foi a primeira epidemia (lembre-se da Gripe Suína, H1N1, por exemplo) e não será, ao que tudo indica, a última grande epidemia ou mesmo pandemia de nossa geração. Mas marcou uma transição, cujo destino ainda não conhecemos. Talvez não vejamos com clareza o tornado estando dentro dele, mas um dia veremos melhor o que foi isso, tal como os astronautas da Apollo 13 só descobriram, dias depois, o tamanho do estrago externo provocado por uma explosão num módulo habitável em que viajaram de volta à Terra.
Assim como não compreendi completamente o que Hitler significava para a geração de meu avô, as gerações futuras não saberão, por mais que tentemos explicar ou demonstrar, o que é nem o que significa a pandemia que estamos vivendo. Até porque jamais conhecerão o mundo que existia até dezembro de 2019. É muito provável que as próximas coortes humanas tenham uma convivência tão corriqueira com temas relacionados à biossegurança, que nem consigam imaginar o tamanho desta guinada. Da mesma forma que a minha geração não sabe o que é um aeroporto sem inspeção com raio-X.
Antes, as pessoas se descreviam de diversas formas – e continuarão a fazê-lo. Mas após a pandemia, haverá a adição de uma nova e grande categoria abrangendo a todos: a de sobreviventes.
Com uma cicatriz em comum.
Oi Ricardo, excelente texto, como sempre! Muito lúcido! Parabéns!!
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Obrigado!!!
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Esse texto é quase um poema. Uma bela (e apropriada) reflexão.
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Obrigado, Ênio!
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