Mercados profissionais, cultura e sistemas simbólicos

Ona BCN

Continuo hoje a análise de mercados profissionais iniciado no texto Mercados profissionais: base de análise, adicionando agora as características culturais e de sistemas simbólicos [1]. Tal abordagem adiciona questões desafiadoras presentes no cotidiano profissional e a questão da estrutura de competição interna ao campo, como veremos abaixo.

A Escola de Frankfurt defendia a ideia de que a cultura desempenha uma função ideológica de legitimação da estrutura de classes existente. O argumento é que a cultura possui também o papel de impedir qualquer reconhecimento de diferenças de classe. Bourdieu trouxe um entendimento ligeiramente diferente desse ao observar que a cultura não exatamente oblitera as classes ao evitar seu reconhecimento, mas age no sentido de legitimar as classes existentes ao difundir um reconhecimento errôneo. Nesse contexto, a cultura é um sistema de símbolos que revela, o tempo todo, a posição de classe do profissional. Ou seja, a cultura do próprio campo profissional não alega a inexistência de diferenças entre profissionais; pelo contrário, demonstra a existência de diferenças e as justifica a partir de argumentos que, apesar de incorretos, são amplamente aceitos pelos próprios profissionais.

Revistas de arquitetura, por exemplo, apresentam obras produzidas por um conjunto restrito de arquitetos que não representa nem 1% do total de profissionais deste campo, e repetem incansavelmente a divulgação deste mesmo grupo seleto [2]. A cultura do campo, além de não questionar essa natureza de exceção, legitima tal característica como natural e justificável. A melhor base de análise para a compreensão dos motivos de isso acontecer continua sendo o trabalho de Pierre Bourdieu, principalmente por meio de sete temas principais destacados de sua obra:

  1. Poder e dominação: como se estabelecem e funcionam os mecanismos que geram, mascaram e ajudam a perpetuar a dominação do campo por parte de um pequeno grupo de profissionais;
  2. Mundo simbólico: os mecanismos de dominação são muito influenciados pelos meios simbólicos, ou seja, pela cultura. Bourdieu revela a contribuição específica das formas simbólicas para a construção de desigualdades internas ao campo de atuação profissional, e como a cultura reproduz estruturas sociais que mantêm essas desigualdades;
  3. Percepção errônea de práticas: os meios simbólicos de dominação funcionam bem porque são mal (ou nada) percebidos. Práticas sociais são retratadas e genuinamente consideradas como naturais, desinteressadas ou objetivas, apesar de agirem, de fato, no sentido de promover os interesses de alguns membros privilegiados do campo. Esta percepção errônea lhe dá legitimidade;
  4. Cultura é usada para reforçar sistemas de estratificação: símbolos e cultura são usados para perpetuar o sistema existente;
  5. Capitais simbólicos e econômicos: apesar de diferentes e irredutíveis entre si, o mundo simbólico opera dentro de processos e estruturas econômicas. As pessoas tentam acumular capital simbólico da mesma forma como fazem com o capital econômico. São dois tipos de capital com lógicas de acumulação e de aplicação diferentes mas parcialmente conversíveis entre si;
  6. Práticas podem ser compreendidas economicamente: este estudo se torna, assim, um estudo da economia das práticas, uma busca pela compreensão da lógica histórica e estrutural da ação de grupos de indivíduos por meio da classificação e posicionamento dos agentes de acordo com as disputas pelo acúmulo de capital simbólico e econômico;
  7. A sociedade é um espaço relacional: nesse modelo, cada profissional / pessoa está sempre em algum tipo de relação com todas as demais, seja superior, inferior ou igual. Quando a posição de um profissional / pessoa muda, mudam todas as suas relações com os demais, e isso muda o espaço como um todo.

As estruturas que condicionam comportamentos e crenças costumam ser inconscientes. Dessa forma, as pessoas costumam descrever de forma incompleta suas próprias vidas. As ações das pessoas em sociedade advêm de uma mistura entre liberdade e coerção; tais ações não são perfeitamente coerentes com as teorias econômicas de comportamento racional, os comportamentos cotidianos são melhor classificados como razoáveis, decorrentes de processos de construção prática, jogos cujas regras são aprendidas por meio da observação e experimentação. Existe o vínculo entre ações e interesses, mas não uma relação perfeita de causa e efeito entre si, pelo menos não de forma puramente intelectual.

Ações e práticas humanas ocorrem num ambiente doutrinário, há uma aceitação incontestável da vida diária, a adesão a um conjunto de relações sociais que fomos levados a aceitar como auto-evidentes. A base de análise proposta por Bourdieu explicita tais relações e as ferramentas que as perenizam. Por este motivo, são altamente aderentes à análise das relações existentes em mercados profissionais.

[GA]

Saiba mais:

Gestão do escritório de arquitetura - capa do livro

Introdução à administração do escritório de arquitetura Segunda Edição

[1] A principal referência utilizada foi o livro O círculo privilegiado, de Garry Stevens, publicação da UnB, 2003.

[2] Tese de doutoramento de Pedro Arantes, FAU-USP, 2010.

[GA] : Esta marca sinaliza textos sobre o tema gestão arquitetônica.

3 comentários em “Mercados profissionais, cultura e sistemas simbólicos”

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