
Imagine nosso país sem o SUS. Imagine se apenas uma pequena parcela da população tivesse acesso à saúde pública, e quase todos os atendimentos, vacinações e programas de acompanhamento fossem particulares. Imagine se uma grande parte da população mais carente não tivesse nenhum amparo do Estado, mesmo nas situações mais críticas, e tivessem que “se virar” como desse. Pois é, seria trágico, e de uma forma ou de outra, o problema acabaria atingindo direta ou indiretamente a toda a população. Agora mude o setor de saúde para habitação, e você terá o retrato fiel do que acontece em nosso país.
Certamente alguém argumentará que a comparação é injusta porque o problema habitacional demanda muito mais recursos por grupo familiar que a saúde pública. Sim, é verdade. Mas a alta exigência de recursos da habitação decorre principalmente do tradicional modelo de provisão habitacional brasileiro, o de dar (ou subsidiar) a propriedade de um imóvel à família sem teto. Nenhum país resolveu seu problema habitacional apenas com políticas de propriedade.
A ONU estabeleceu, e o governo brasileiro aderiu a uma lista de Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) com metas a serem atingidas até 2030. O ODS 11 coloca como primeira meta “garantir o acesso de todos à habitação segura, adequada e a preço acessível”. Em nenhum lugar a ONU diz que o problema habitacional deve estar associado à propriedade do imóvel. E quando o acesso à habitação se desvincula da propriedade da habitação, novos modelos de provisão passam a ser possíveis, como a locação social, as parcerias com a iniciativa privada, os modelos de contrato público remunerados pelo desempenho (já previsto na nova lei de licitações 14.133) e a real possibilidade de licitação em lotes, o que viabiliza a reocupação de edifícios abandonados em áreas centrais de grandes cidades (vide, por exemplo, o Projeto “Morar no Centro” da prefeitura do Recife).
Todas essas novas possibilidades demandam muito menos recursos públicos quando comparadas às tradicionais políticas públicas de transferência de propriedade. Em outras palavras, o poder público consegue abrigar muito mais famílias no mesmo espaço de tempo e com a mesma quantidade de recursos. Não podemos nunca perder a perspectiva do estado emergencial que nossas cidades se encontram em termos habitacionais. E é sempre bom lembrar que o modelo está sendo aplicado com sucesso em país de desenvolvimento econômico semelhante ao nosso, como Argentina, Uruguai, Chile, México, África do Sul e Hungria. Sem falar que já deu certo há muito tempo na Holanda, França, Grã-Bretanha, Alemanha, Estados Unidos e em diversos outros que conseguiram equacionar seus déficits habitacionais.
Então deveríamos abandonar os programas tradicionais e migrar para novos modelos? Certamente esse não é o melhor caminho num país com déficit de 6 milhões de moradias. As novas modalidades, justamente por consumirem menos recursos públicos, podem oferecer uma grande quantidade de unidades habitacionais adicionais ao que outros programas já fazem com sucesso há décadas. E para cada caso, existe um tipo de solução mais adequado. Em termos de habitação social, jamais deveríamos pensar em nenhum tipo de subtração, sempre de adição. Antes de mais nada, temos que abaixar a febre desse paciente.
“Habitar significa pertencer a um lugar concreto, ter uma base de apoio existencial em um sentido cotidiano[…]”
– Raquel Barros e Sílvia Pina. A humanização no projeto da habitação coletiva. In: O processo de projeto em arquitetura: da teoria à tecnologia. São Paulo: Oficina de Textos, 2011.
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