Das novas funções urbanas (e humanas)

Talvez a pandemia de covid-19 tenha colocado em definitiva obsolescência a Carta de Atenas ao deslocar os eixos principais da discussão sobre as funções humanas da cidade. Isso ocorre principalmente por adentrarmos em um novo período histórico no qual a discussão das localizações deixa de ser uma questão primordial de desenho urbano e passa a ganhar relevâncias de outras naturezas.

Resultado do IV Congresso Internacional de Arquitetura Moderna realizado em 1933, a Carta de Atenas foi um manifesto conduzido por um Le Corbusier que ainda consolidava sua posição no cenário urbanístico mundial. Com sua visão racionalista característica, simplificou as funções urbanas em quatro categorias básicas: habitar, trabalhar, lazer e a circulação.

A visão modernista de Le Corbusier propôs a separação total de funções no espaço urbano, e encontramos uma clara experiência deste modelo na região central de Brasília (plano piloto, para citar um exemplo próximo). Dos erros decorrentes, principalmente da reprodução em larga escala, surgiram as críticas impulsionadoras de novos modelos de enriquecimento da vida urbana por meio de diversos instrumentos. Um deles certamente foi a mistura de usos nos microterritórios intraurbanos.

Mas a discussão sempre foi de distribuição de espaços e de definições de usos no território. Até que a pandemia de covid-19 colocou boa parte do planeta isolada dentro de suas casas, onde a tecnologia permitiu que atividades intelectuais e burocráticas continuaram a ser desempenhadas sem perdas de produtividade, e em muitos casos, com ganhos reais.

Dessa experiência, uma parte da força de trabalho nunca retornou, especialmente as de tecnologia. E isso trouxe um novo cenário de questionamento de modelos urbanos, principalmente por consequência dos acúmulos de funções nos espaços residenciais.

A função lazer já vem migrando aos poucos para as residências há décadas. O teletrabalho, ou home office, acumulou a função trabalhar no mesmo espaço. Por consequência, a função circular viu um impacto inédito de redução radical em sua demanda, o que a deu outro significado por meses seguidos.

A questão mais importante que se coloca não é este foco evidente, mas o seu negativo. Não a figura, mas o fundo. O convívio social (físico) tem importantes papéis de conhecimento e reconhecimento do outro, com óbvios rebatimentos de organização social. Democracia, respeito, saúde mental, aceitação do diferente e até a evolução do conhecimento humano são apenas alguns deles.

E assim, a cidade demonstra uma importância incrível para a saúde de sua sociedade de habitantes, ainda que parcial ou totalmente privada de suas funções lazer, trabalhar e circular em seus espaços públicos. Ficou impossível negar que a Carta de Atenas se distanciou, nos anos recentes, do conceito global de adequada organização urbana.

E humana.

Photo by Christian Santiago on Pexels.com

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