Quem olha para a pujança econômica da China super-industrializada de hoje, após a entrada do país na Organização Mundial do Comércio, pode se esquecer dos erros cometidos ao longo dos anos 1970 e 1980. Mas essa é uma observação pertinente – e importante, pois estabelece o cenário doméstico (e em países vizinhos) para o que viria a acontecer nas décadas seguintes.
Em 1949, quando da revolução comunista, a China apresentava um padrão de desenvolvimento extremamente desequilibrado: 90% da infraestrutura industrial do país concentrava-se em aproximadamente 100 “portos abertos”. Quase 20% estava apenas em Shangai. Essas cidades estavam sob controle estrangeiro, a ponto dos chineses serem tratados como forasteiros. Um parque de Shangai chegou ao extremo de fixar um aviso que proibia a entrada de cachorros e chineses.
A consequência disso foi uma postura extremamente antiurbana por parte dos novos dirigentes comunistas, os quais levantaram a bandeira da revolução no campo, acreditando que ali residiam os valores mais genuinamente chineses não corrompidos. Além disso, os primeiros anos após a revolução foram marcados por intenso êxodo rural, a as cidades estavam completamente despreparadas para receber essa população migratória.
Numa tentativa de reverter este fluxo, o governo chinês da época colocou como meta a industrialização do campo. Essa política ficou famosa como hsan chan xia xiang (“a juventude instruída ruma para as montanhas e para o campo”). Assim, o governo despachou milhões de jovens recém-graduados para áreas rurais, com a missão de formar uma liderança de promoção do desenvolvimento.
Isso aconteceu desde o final da década de 1950, época conhecida pela política do Grande Salto para a Frente (que se mostrou absolutamente desastrosa), até o final da década de 1960, momento histórico da Revolução Cultural. Esse movimento tinha dois componentes: desenvolvimento de indústria pesada no interior, e desenvolvimento rural auto-suficiente com reforma agrária, melhoria das técnicas agrícolas e a implantação de um modelo idealizado de indústria rural em pequena escala. Foi uma tentativa de planejamento de baixo para cima (que jamais o foi, de fato), que logo se mostrou limitado às aparências, e resultou em fracasso.
O centralizado e autocrático governo chinês utilizou todo seu aparelhamento estatal para fixar políticas de preços e taxação para favorecer o setor rural. Porém, a total inabilidade das comunas em manipular o sistema levou a falhas repetidas e, algumas vezes, desastrosas (caso do Grande Salto para a Frente).
As indústrias rurais, como os fornos de quintal para produzir aço nos anos 1950, obviamente se mostraram antieconômicas por não viabilizar o investimento em “CAPEX”, por assim dizer. Toda essa estrutura de industrialização rural dependia de aproximadamente 15 milhões de profissionais urbanos espacialmente deslocados. Descontentes, só pensavam em retornar às cidades. Na impossibilidade disso ocorrer, por imposição do Estado centralizado, muitos se refugiaram em Hong Kong – o que explica parte do exponencial desenvolvimento econômico dessa cidade nas décadas seguintes.
Mais para o final da década de 1970 e início dos anos 1980, sob o regime de Deng, esse programa foi, em grande parte, abandonado. Os resultados foram mínimos, e os portos abertos continuavam sendo as maiores cidades chinesas – e líderes absolutas na produção industrial doméstica – no final da década de 1980. Na mesma época, a indústria rural respondia por aproximadamente 3% da força de trabalho rural.
Nos primeiros 25 anos de regime comunista, a distribuição geral da população pouco havia se modificado, proporcionalmente falando.
A China de hoje vive uma realidade de intensa industrialização decorrente da entrada do país na Organização Mundial do Comércio, efetivada em 2001. O reflexo disso foi a crescente demanda agregada por produtos básicos, como petróleo, minério de ferro, aço, e soja, principalmente a partir de 2005 – grande motivador do boom econômico colateral na América Latina, principal fornecedora de algumas dessas commodities. O forte crescimento econômico da região, a partir de 2005, foi sentido também no Brasil. Até países da região com graves problemas em seus fundamentos macroeconômicos, como a Argentina, conseguiram se beneficiar, de alguma forma, do disparo chinês.
Porém, o cenário de fundo chinês continua sendo, até hoje, aquele formado pelas políticas estatais do final do século 20, conforme descrito acima.
Este caso também nos deixa duas grandes lições:
- A situação econômica de um país pode mudar muito, em pouco tempo, se as variáveis mais sensíveis forem ajustadas adequadamente;
- Mas isso não altera o fato de que os erros do passado continuarão impactando a macroeconomia do país durante muitas décadas, e serão herdadas pelas próximas gerações.
Fonte: HALL, Peter. Cidades do amanhã: uma história intelectual do planejamento e do projeto urbanos no século XX. São Paulo: Perspectiva, 2013. p. 302-304.