Mercado de projetos de arquitetura: uma base para estratégia de abordagem

high rise buildings with logs in water

O mercado da Arquitetura é muito específico. Quem tenta planejar o marketing do escritório seguindo manuais tradicionais, certamente tem problemas ao se relacionar com o mercado, principalmente de captação de serviços e precificação inadequada. Nossa área trata de prestação de serviços intelectuais, complexos e culturais. Isso exige estratégias de mercado também específicas.

Um dos melhores estudos que já li sobre os motivos disso acontecer (além de ler Bryan Lawson), é o livro de Garry Stevens, O círculo privilegiado, publicado pela UnB. A partir das constatações de Pierre Bourdieu, o texto busca a natureza de nosso desafio com o mercado a partir do natureza do que nós, enquanto profissionais de arquitetura e urbanismo, representamos para o mercado.

É necessário entender como o mercado da arquitetura funciona, para entender por que alguns escritórios participam de um restrito e glamuroso star system enquanto muitos outros batalham sem sucesso para se aproximar do status desse grupo principal.

Se você pensar bem, vai concordar que qualquer profissão é um monopólio socialmente outorgado, geralmente de ocupação não-manual, proporcionada por uma educação formal universitária demorada. Conta com organizações auto-reguladoras, pela qual se distancia o problema de sua solução, o que  e valoriza de seus membros. Ainda assim, conceito de profissão pode ser insuficiente para a compreensão dos desafios enfrentados pelos arquitetos, e um dos motivos pode ser o erro em que se incorre ao ignorar a possibilidade dos arquitetos poderem ter outras funções além do projeto de edifícios (uma premissa incorreta de restrição de mercado).

Considerando o poder como um produto das relações entre pessoas (e não inerente às mesmas), e que a cultura estabelece um sistema de símbolos que revela constantemente a posição de classe de uma pessoa (função ideológica de legitimação da estrutura existente), constatamos facilmente que alguns grupos são mais bem-sucedidos que outros em promover seus interesses, e acabam controlando mais recursos. isso acontece em todos os campos, não só na arquitetura.

Os grupos, inconscientes das estruturas que condicionam seu comportamento e suas crenças, são divididos entre dominantes e dominados. Além do óbvio poder da força física e do poder econômico, existe uma terceira forma de poder, mais potente e onipresente: o poder simbólico. Este atua no campo da cultura, cuja lógica é a criação, legitimação e reprodução da estrutura existente. O poder simbólico é muito mais eficaz que o poder físico por convencer as pessoas a participarem de sua própria condição. É muito mais fácil controlar recursos de um grupo convencido de que outros competidores devem controlá-los. Desnecessário persuadir pessoas que voluntariamente cedem.

Simetricamente ao papel do capital econômico como base de poder econômico, o poder simbólico vem da acumulação de capital cultural, o qual se manifesta de quatro formas:

  1. Institucionalizado: são as qualificações técnicas e acadêmicas, saber coisas e possuir certificados;
  2. Objetivado: os objetos e bens culturais, tais como as obras de arte ou qualquer outro objeto simbólico produzido pela sociedade;
  3. Social: as redes duráveis de pessoas de apoio e auxílio ao longo da vida;
  4. Corporificado: a forma mais sutil, existente no íntimo das pessoas. São atitudes, gostos, preferências e comportamentos. Não é percebido como capital, age de forma encoberta, dissimulada. E mostra como práticas aparentemente triviais e naturais são cruciais para o poder simbólico.

Os bens simbólicos só podem ser “consumidos” por quem tem os esquemas mentais “corretos” para sua apreciação e compreensão de seus significados, são bens codificados que exigem uma bagagem mental específica de decodificação. Uma casa projetada por um ícone do campo da arquitetura é vista de formas muito diferentes entre um arquiteto e um contador. Todas as pessoas tentam aumentar seu capital econômico e simbólico ao longo da vida, e tentam, para isso, realizar o que pensam ser possível. Por isso, se retiram das áreas em que julgam não serão bem-sucedidos. Talvez você conheça pessoas que desistiram de estudar arquitetura por considerar que desenhavam mal, por exemplo.

Assim, os menos favorecidos ajudam a concretizar a estrutura existente ao eliminar a si próprios, de forma muito mais eficaz do que seria possível com qualquer outro tipo de punição econômica. Aqueles que têm melhores condições prévias, podem avançar mais seus interesses do que aqueles que possuem menos, e a sociedade acaba naturalmente se subdividindo entre classes subordinadas e dominantes, com uma possível divisão ampla em três classes:

  1. Subordinada: possuem pouco das duas formas de capital, econômico e cultural;
  2. Dominante-subordinada: possuem mais capital cultural, como artistas, intelectuais e profissionais. São responsáveis pela produção de bens simbólicos;
  3. Dominante-dominante: possuem maior capital econômico, e através dele, dominam o capital cultural. São responsáveis pela produção de bens materiais.

É possível a movimentação do indivíduo entre essas classes, mas este carregaria essa história em seu ser, naturalmente, sem perceber. Essa própria movimentação é limitada não apenas pelo volume inicial de capital de cada um, mas também pela própria criação, educação e hábitos cotidianos, conjunto esse que influencia a estratégia de investimento pessoal de cada um. É interessante para o próprio sistema permitir que algumas poucas pessoas migrem rapidamente de estratos mais baixos para os mais altos, de forma a legitimar que a sociedade é meritocrática.

Arquitetura e arquitetos estão inseridos no campo da cultura, o qual é utilizada para esconder a verdadeira natureza das relações de entre grupos. A desigualdade na distribuição de talentos naturais entre os indivíduos é explicação dada para a evidente distribuição desigual de recompensas materiais e simbólicas, e dissimula a extraordinária continuidade que existe entre os arquitetos destacados, de geração para geração. Se o talento natural fosse, de fato, fator decisivo para o sucesso, deveríamos ter muito maior mobilidade entre esses grupos e tempo nos holofotes.

Esta desigualdade é mantida pelo poder simbólico, portanto pelos meios culturais, pois quem os domina fecha seu espaço social e transmite poder através das gerações erigindo barreiras simbólicas: gostos e estilos de vida diferenciados.

A natureza dessa batalha fica oculta daqueles que a disputam, algo que não ocorreria se o conflito fosse econômico. A cultura dos líderes é por eles subsidiada, um ato visto como desinteressado, então concretiza-se e, ainda que não seja consumida por todos, torna-se aquela que todo mundo “deveria apoiar”. O que estão destacados e em evidência no setor promovem seus interesses e parecem estar promovendo os interesses de toda a sociedade. A cultura dominante, por sua vez, valoriza certos bens culturais e persuade a sociedade a aceitar essa avaliação. O gosto, entendido como uma propensão a se apropriar (material ou simbolicamente) de um dado conjunto de objetos e práticas, é o principal mecanismo pelo qual o grupo podem manter sua coesão e se separar de outros.

O espaço da competição entre arquitetos é formado por um conjunto de instituições sociais, indivíduos e discursos que se apoiam mutuamente. São arquitetos, críticos, professores, construtores, clientes, a parcela do Estado envolvida, instituições financeiras, o discurso arquitetônico, as exigências legais, entre outras coisas. Neste espaço, os arquitetos competem pelos recursos e capitais específicos do seu campo, além das preocupações genéricas do marketing (conquistar e reter clientes, fortalecimento da marca, posicionamento, diferenciação, etc.). O capital de um campo só tem significado naquele campo, e seu valor está sujeito a flutuações. Como exemplo, a história do Movimento Moderno pode ser vista como a vitória na tentativa de valorização de seu próprio capital simbólico a partir da desvalorização do capital simbólico beaux-arts.

Isso torna a disputa por capital simbólico muito mais complexa, as pessoas competem para impor ao campo a sua definição do que é simbolicamente valioso. Esta estrutura define uma importante e sutil barreira à entrada de novos competidores, porque estes precisam precisam batalhar para entender todas as regras sociais sutis e aceitas sem discussão que regem esta competição. A entrada neste mercado requer um investimento de porte, que é se tornar culta, aprender uma miríade de práticas e gostos. O bom gosto natural é inculcado desde a infância, representa um investimento de toda uma vida.

Este entendimento de Bourdieu apresenta uma explicação plausível, por exemplo, dos motivos de a marca do escritório de Arquitetura e Urbanismo ser tradicionalmente associada a indivíduos. Isso tem origem num processo tradicional de projetar: a partir do século XIX, o processo de projetar foi desligado da construção, e os projetistas foram colocados no centro das atenções, facilitando o reconhecimento público de realizações individuais. Jovens arquitetos passaram a ser entregues a renomados mestres na esperança de que a habilidade tácita do mestre fosse absorvida pelo aprendiz, e nas escolas de arquitetura, exigia-se que alunos projetassem à moda de um indivíduo específico (aquele que possui relevante capital simbólico). O sucesso era associado a imagens de fácil identificação (a marca).

Dentro do campo, há tensões estruturais estabelecendo algumas bases deste ambiente de negócios específico. Primeiro, o campo cultural possui uma dupla hierarquia, seus membros fazem parte da classe dominante por possuirem quantidades elevadas de capital cultural, mas são também subordinados à classe dominante econômica, colocando-os numa relação ambivalente com outras classes. Assim, os produtores culturais estão em permanente luta com os economicamente dominantes quanto ao valor relativo de seus bens simbólicos em relação aos bens econômicos (taxa de coversão). A cultura precisa possuir um valor significativo (inclusive para o economicamente dominante manter a estrutura), mas que não seja excessivo, pois isso ameçaria a primazia do capital econômico. Isso é um definidor importante para a precificação dos serviços do escritório de projetos, porque este oferta o capital simbólico ao mercado, e esse meio-termo é buscado por esses dois lados do balcão.

O segundo ponto importante de tensão interna ao campo é o divisor entre aqueles que produzem bens simbólicos para consumo de massa por todas as classes (Campo da Produção de Massa), e aqueles que produzem apenas para a cultura dominante (Campo da Produção Restrita). O primeiro grupo lida com mercadorias transmitidas por canais de mídia em massa, o mercado é público, formado por consumidores externos ao campo, os arquitetos são anônimos, e o sucesso é medido funcional e economicamente. Já o segundo grupo, da produção restrita, lida com objetos únicos, os consumidores são internos ao campo, os arquitetos são renomados, e o sucesso é medido por padrões simbólicos, intelectuais, e estéticos. Ou seja, no campo de projetos de arquitetura, maior visibilidade e melhores instrumentos de diferenciação não são necessariamente acompanhados de maior participação de mercado ou de maior volume de negócios – aliás, vários estudos apontam justamente para o sentido contrário.

Há uma tendência natural do campo de querer se tornar o próprio juiz de seus próprios produtos, uma tentativa de ganhar autonomia em relação a outros campos. No campo do projeto de arquitetura, a forma mais valiosa de capital é, teoricamente, simbólica – intelectual, estética. A competição nesse campo é pela consagração do projetista, numa analogia à religião enquanto instrumento de justificação da dominação e das desigualdades. Há duas estratégias principais para isso:

  • Conservação: aqueles que já dominam o campo defendem-se usando o silêncio enquanto reafirmação de sua auto-evidência, negando a arbitrariedade dos símbolos;
  • Subversão: desafiar o establishment tentando uma revolução simbólica, antecedendo possíveis exigências futuras de seu mercado, e correndo os riscos decorrentes de se enfrentar o dominante – e isso depende de um arsenal a seu favor de bases econômicas e simbólicas sólidas.

O sucesso na consagração do arquiteto é a rotulação, pelo campo, como valioso. E o arquiteto “valioso” reforça o poder do campo que assim o rotulou, perpetuando essa estrutura de competição. O grupo atuando com projetos de arquitetura que pertence a este seleto grupo consegue praticar preços numa faixa superior àqueles situados no Campo de Produção em Massa, conforme apresentado anteriormente.

As pesquisadoras Roxanne Williamson e Magali Sarfati Larson (em dois estudos independentes entre si) descobriram que os arquitetos mais renomados e premiados raramente conquistam sucesso econômico ou se vinculam a um modelo empresarial racionalizado, enquanto os escritórios maiores, mais ricos e com maior volume de negócios raramente são lembrados além de suas gerações. São paradigmas da Arquitetura que nada é mais vulgar que mero dinheiro, que bom gosto não pode ser comprado (que a tentativa de comprá-lo é prova de falta de gosto), e que a dedicação ao capital simbólico implica uma negação ao econômico.

Ter consciência deste contexto é o primeiro passo para se tratar da estratégia do escritório, ou seja, de seu planejamento de longo prazo. Ignorar este cenário pode significar o esforço de uma vida inteira em esbarrar contra uma parede.

Saiba mais sobre preços:

Preços em arquitetura e urbanismo

Preços em arquitetura e urbanismo - livro

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