Gabriel Bolaffi “Urban Planning in Brazil: past Experience, current trends” (tradução parcial – primeira parte)
Publicada em: Habitat International vol. 16, N° 2, p. 99 a 111, 1992.
Tradução de Ricardo Trevisan
(p.99) Até o golpe militar 1964 não havia uma política nacional de planejamento urbano, apenas experiências pontuais de planejamento e desenho urbano ou experiências de renovação em várias cidades brasileiras. O Rio de janeiro foi completamente redesenhado e reconstruído no início do séc. XX segundo o padrão Haussmaniano em voga na época. No caso do Rio, foi feito por várias razões inclusive dar um aspecto Europeu à capital federal, expelir as classes “infectas e perigosas” da região central da cidade e implementar medidas sanitárias contra a febre amarela.
O centro de São Paulo foi remodelado entre 1910 e 1915 por Bouvard. Alguns anos depois, a capital de Minas Gerais foi transferida da velha cidade colonial de Ouro Preto para a nova cidade desenhada (planejada) Belo Horizonte. Durante o ciclo da borracha na Amazônia (início séc. XX), o governador do estado do Pará, ao retornar da Europa, decidiu remodelar Belém, sua capital e além de alargar ruas e desenhar calçadas largas e apropriadas, deu continuidade ao plano de plantio de belas mangueiras nessas calçadas. Durante a ditadura de Getúlio Vargas (3 ou 4 décadas depois), algumas áreas nas grandes cidades foram remodeladas de acordo com o gosto pesado e ostentoso daqueles anos. Ao mesmo tempo, Mussolini, Hitler, Roosevelt e Robert Moses estavam construindo suas Roma, Autobahns alemãs e obras públicas de expressão urbana do New Deal. Tanto por razões políticas e econômicas, o Brasil não ficaria imune a essas tendências. No final dos anos 1950, os arquitetos Lúcio Costa e Oscar Niemeyer apresentaram Brasília, a nova e faraônica “moderna” capital do Brasil, a qual foi chamada de “última das cidades medievais” por Francisco Oliveira.[1]
Dezenas de eventos análogos poderiam ser citados. Muitos deles refletem o espírito de diferentes épocas em que ocorreram, mas nenhum deles pode ser considerado o efeito de uma política nacional de planejamento urbano. Não havia condições para o estabelecimento de uma política urbana nacional, ou mesmo a adequadas conceituação de uma, em um país imenso, novo e esparsamente povoado como no pré-guerra com sua história de modo de governo federal. Para quem não é familiarizado com a história econômica recente do Brasil, devo adicionar que a primeira rodovia pavimentada, conectando São Paulo e Rio de Janeiro, com menos de 500 km de distância, não se completou antes de 1952.
(p.100) Como vimos, ficou a cargo de generais que ascenderam ao poder em 1964, com sua pseudo-modernização autoritária, criar a primeira tentativa de política nacional de planejamento urbano. Este fato está intimamente relacionado às condições políticas econômicas que levaram as forças armadas a tomar o poder e à retórica que foram forçadas a adotar naquele contexto.
Como costuma acontecer, a crise política que levou ao golpe de Estado foi resultante, principalmente, de uma crise econômica. Desde o término da II Guerra Mundial, o país havia experimentado um longo e pacífico período de industrialização e crescimento econômico devido, em grande parte, a uma política de substituição de importações. Mas sob as condições brasileiras um efeito colateral aparentemente inevitável do esforço da industrialização era uma quase permanente taxa de crescimento da inflação. De 1956 a 1961, Juscelino Kubitschek acelerou o processo de industrialização e consequentemente a taxa inflacionária a limites insuportáveis. O país ficou “ingovernável”. O próximo presidente eleito renunciou após poucos meses e seu sucessor, João Goulart, não tinha apoio político nem a autoridade necessárias para impor medidas deflacionárias. O precedente político da Revolução Cubana e o clima da guerra fria só contribuíram para adicionar estresse político a uma situação economicamente explosiva. Goulart tinha uma retórica populista, mas não tinha um projeto político de esquerda. Assim como Getúlio Vargas, seu modelo histórico, ele poderia ser rotulado “mãe dos pobres e pai dos ricos”. Mas as elites que comandavam o país estavam amedrontadas com a possibilidade de uma revolução esquerdista. Líderes conservadores e oficiais militares estavam conspirando desde o término da década anterior.
Esta era a atmosfera política quando, em 1961, o American Institute for International Relations enviou uma equipe para o Brasil para conduzir uma pesquisa nacional de opinião pública sobre atitudes políticas da população. Uma das muitas conclusões da pesquisa foi estabelecer aspiração mais freqüente dos membros da população urbana brasileira era ter uma casa. Outra conclusão foi que havia correlação estatística entre a propriedade de uma habitação e atitudes políticas conservadoras.
O General Castelo Branco assumiu o poder em 01/04/1964. Sua bandeira era a luta contra a subversão, inflação e corrupção, todos apresentados como “farinha do mesmo saco”. Mas os eventos subseqüentes mostraram que apesar de ignorância e imaturidade política, os militares possuíam um projeto político conservador consistente. Eles e seus conselheiros civis estavam claramente atentos ao fato que o custo de controlar e reduzir a espiral inflacionária seria algum tipo de recessão econômica e todas as suas amargas consequências, incluindo uma alta taxa de desemprego. Eles sabiam que teriam de impor uma série de medidas impopulares e que algum benefício teria que ser oferecido às massas, simultaneamente ao endurecimento político.
Para este propósito, nada poderia ser mais adequado que um programa habitacional para baixa renda. Ao sinalizar com uma possibilidade consistente de casa própria para as massas, poderiam ter esperanças de conquistar apoio político a medidas desesperadas. Enquanto isso se realmente pudessem ter sucesso em canalizar ativos financeiros não-inflacionários para a indústria da construção e para grandes companhias (contratos), isto poderia se tornar um instrumento Keynesiano de sucesso para aliviar os efeitos de políticas deflacionárias inevitáveis. Na realidade, naqueles anos, os economistas brasileiros já sabiam que apesar de ser uma (p.101) atividade econômica com baixa capacidade de prover fortes estímulos ao resto da economia, a indústria da construção utilizava intensamente mão-de-obra desqualificada e proveria grande número de empregos para as camadas sociais mais baixas.
De agosto de 1964 a 1967, um grande complexo cheio de recursos e muito habilidoso sistema financeiro e institucional de planejamento urbano e habitação foi criado. No vértice do sistema estava o BNH – Banco Nacional da Habitação. O BNH foi criado em agosto de 1964 com o propósito explícito de “promover a construção e aquisição de habitação, especialmente para as classes de baixa renda”. A mesma lei criou o banco, também institucionalizou a indexação monetária e um sistema inteligente de poupança voluntária protegida da inflação. No ano seguinte foi criado o SERFHAU – Serviço Federal de Habitação e urbanismo, com o propósito de prover financiamento e assistência técnica para todas cidades e estados, do país com objetivo de auxiliá-los na elaboração de seus respectivos planos de desenvolvimento. A razão era que a atividade da indústria da construção civil seria logo tão intensa que, a menos que as cidades tivessem desenhado planos adequados, não resistiram ao impacto do grande número de novas construções e tornariam-se caóticas (o que de fato ocorreu). Depois, um decreto federal estabeleceu que os estados que não tivessem concluído seus planos até o final de 1970 não estariam qualificados para receber qualquer recurso federal, e, uma vez que todo o sistema fiscal teve que ser reformado durante os anos anteriores para canalizar a maior parte de recursos tributários para o governo federal, isso tornou-se uma ameaça extremamente séria e persuasiva.
Em 1967, o BNH deteve o controle do FGTS, tendo constituído por empréstimo compulsório de 8%, mensalmente deduzido da folha de pagamento do trabalhador. Em 1969, o BNH tornou-se o segundo maior banco brasileiro, perdendo apenas para o Banco do Brasil.
Este não é lugar para fazer uma avaliação histórica do regime militar. Mas, para o propósito deste paper devemos analisar com maior profundidade o primeiro das cinco Presidentes Generais, Castelo branco, que desempenhou um relevante e peculiar papel. Como citado anteriormente, ele, sua equipe militar e seus conselheiros civis tinham um projeto político consistente, apesar de autoritário e ingênuo. Eles tinham extrema desconfiança em relação a políticos, que eram vistos como oportunistas e corruptos, e em relação às massas, que eles rotulavam de ignorante e alienada. Eles se auto-intitularam como a única elite moral e intelectual da nação e estavam convencidos que os únicos civis confiáveis eram os empreendedores industriais, os intelectuais educados no exterior e os técnicos altamente especializados, dado que eles não eram “comuns”. Durante 1964 e anos seguintes, o regime militar tentou estabelecer uma completa tutela sobre todo o país e sociedade civil. Os partidos políticos, que haviam sido tolerados no início, foram extintos menos de 2 anos depois e um sistema bipartidário foi imposto em 1966. Durante os primeiros anos após o golpe, um grande número de políticos foi exilado sob acusação de subversão ou corrupção. Nos anos seguintes, muitos outros políticos que apoiaram o golpe desde a fase de conspiração foram exilados também. Eles atribuíram papel importante à educação, mas decidiram concentrar esforços na expansão das universidades em vez de melhorar o (p.102) sistema público de educação elementar. Quanto à distribuição de renda, atitude do regime é refletida da repetida metáfora que “o bolo precisa crescer antes de ser dividido”. A concentração de renda era política declarada.
HABITAÇÃO E PLANEJAMENTO 1970-1990
As políticas a serem adotadas pelo sistema de planejamento urbano e habitação tinham que ser consequência da atitude política geral (resumida acima); e inevitavelmente o resultado foi catastrófico. No que se refere à habitação, o BNH nunca atingiu as 6 milhões de unidades previstas a serem realizadas até 1970. Quando foi extinto em 1986[2], após 22 anos como símbolo do regime militar, alcançou entre 4 e 5 milhões de unidades. Naquela ocasião, as 3 milhões de unidades que o BNH havia financiado para os mais ricos haviam absorvido 92% dos investimentos em habitação, enquanto apenas 8% foram investidos para financiar 1,5 milhões de unidades que foram construídas para famílias com renda inferior a 5 salários mínimos. Em 1984 tornou-se público que dados sua política e subsídios implícitos[3], o BNH estava caminhando para um enorme déficit cujo montante nunca foi revelado, mas foi estimado por fontes bem informadas em valores acima de 20 bilhões de dólares.
A atitude tutelar do General Castelo Branco e sua equipe que tinha imposto a todo o país, teve forte reflexo sobre o BNH e prática do sistema habitacional, criando situações paradoxais em termos de seus objetivos declarados. Em concorrência para obras públicas, uma grande construtora seria sempre favorecida em relação às menores, embasado no argumento que a maior deveria ser sempre “mais moderada” e mais eficiente. O resultado foi que, após poucos anos, meia dúzia de gigantescas construtoras monopolizaram as obras publicas de todo o país, e os preços subiram acima das taxas de inflação. Uma família de casse média alta poderia ter fácil acesso a empréstimos diretos do BNH para construir sua própria mansão, controlando tudo, desde a aquisição do terreno e materiais básicos ate a escolha do arquiteto e contratação de mão-de-obra. Os pobres eram forçados a comprar unidades acabadas padronizadas construídas aos milhares por grandes construtoras. Este critério ambivalente foi estabelecido e mantido (contra duras críticas) com base no argumento que os pobres eram incapazes de cuidar de seu dinheiro. Uma vez mais, os pobres pagaram mais!
Quando se observa os planos de desenvolvimento duramente promovidos pelo SERFHAU desde 1965, percebe-se que toda a atitude tutelar é fortemente decisiva novamente. Para começar, o SERFHAU ofereceu às cidades do país todo o dinheiro necessário para a realização dos planos com a condição de que contratassem uma empresa de consultoria privada para realizá-los. Como a maioria desses consultores estavam em São Paulo ou no Rio de Janeiro, isto significa que cidades de todo o Brasil estavam sendo planejadas por um grupo de jovens arquitetos, (p.103) sociólogos, economistas e afins, sem maiores conhecimentos das condições políticas e econômicas locais. “Desenhar” um plano era uma atividade abstrata técnica, sem relações com a população, nem mesmo com líderes ou políticos locais, que supostamente teriam que viver com o plano. As cidades para as quais aqueles técnicos altamente qualificados estavam alargando ruas, projetando vias expressas (ainda em moda naquela época), impondo padrões e regras edilícias, ou mesmo criando áreas verdes (numa proporção de 4m²/habitante) frequentemente pelo preço de demolir bairros inteiros, que eram vistos em geral como mera entidades físicas e materiais. Nunca eram tratados e reconhecidos como lar de centenas de milhares, em alguns casos, milhões de pessoas. Talvez isso explique porque o tempo disponível para a preparação de um plano era sempre tão curto; alguns meses para cidade pequenas e médias e um ano para grandes capitais.
A esfera da tecnoburocracia tem sido apropriadamente referida como o “WUNDERJAHREN” do regime militar autoritário. Os planejadores urbanos eram jovens espertos e bem intencionados, resistentes e ingênuos profissionais (que normalmente opunham-se ao regime). Estavam estarrecidos com os altos preços e a aparente onipotência daqueles com quem estavam envolvidos. No final dos anos 1960 e início dos 1970 sob a influência de Herman Kahn e do Hudson Institute, a futurologia estava na moda. Utilizavam informação estatística com o objetivo de aplicar correlações e regressões para predizer crescimento da população, automóveis consumo de água e eletricidade, consumo de carne x tapioca, etc.
Nessas condições, os planos resultantes não eram nada além de exercícios formais e abstratos. Uma coleção de grandes livros com muito gráficos, tabelas estatísticas, desenhos e mapas. Uma enorme variedade de regras normativas, a maior parte absolutamente sem sentido ou, pior, incompreensível para aqueles que supostamente teriam que implementá-los e conviver com elas.
Talvez para amenizar a situação, após as primeiras experiências, algumas das empresas de consultoria decidiram que, além do material impresso e desenhado, deveriam também produzir modelos em escala reduzida de trechos das cidades e construções relevantes. Isto era para mostrar “àqueles idiotas” como a cidade ia parecer após a implementação do plano. Afinal, havia grandes quantidades de dinheiro envolvido, os interesses comerciais não estavam sendo negligenciados. Alguma atenção deveria ser dada ao cliente, o prefeito, que após receber o plano em ato solene na prefeitura, poderia organizar exibição pública dos modelos em escala reduzida, para mostrar aos cidadãos quão bonita a cidade se tornaria com a aprovação dos vereadores e de apoiadores políticos.
Não é possível dizer que aqueles planos eram intrinsecamente sem sentido. Claro que algumas cidades receberam melhores ofertas que centros, e ocasionalmente aconteceu de consultores inescrupulosos forjarem planos com base em imagens falsas. Porém, a maioria dos planos continha grande multiplicidade de informações úteis e uma variedade de propostas interessantes e sugestões úteis. Infelizmente, as condições em que foram feitos tornou quase inevitável que a grande maioria deles fossem catalogados e esquecidos em poucos anos, às vezes em poucos meses, após sua conclusão.
Algum lugar em todos os relatórios dos planos havia várias páginas dedicadas a explicar que o plano é mais um processo do que um ato mecânico de poder. Muitos dos relatórios nunca foram adequadamente lidos nem compreendidos. Aqueles planos eram desenhados como ato mecânico e apresentado às cidades, seus moradores e líderes locais como ato tecnocrático de força de vontade. Afinal, um considerável número de prefeitos apenas contratou um plano para permanecer elegível para receber fundos federais, e não por estarem convencidos que suas cidades seriam beneficiadas com o plano em si. Além disso (p.104), os planos eram desenhados, não desenvolvidos junto com a população afetada. Como um problema de fato, só uma pequena parcela de cidadãos chegou a saber que um pano estava em processo de projeto ou que tinha sido concluído. Ler um jornal local não ajudava, uma vez que o próprio jornalista não estava certo do que estava reportando. Muito frequentemente a impressa refletia precariamente os planos, objetivos e escopos, confundindo-os com todo a retórica do regime sobre a “modernização” súbita do país e rápida expansão das taxas de crescimento econômico. (Naqueles anos a economia estava se expandindo a uma taxa anual de 9%).
Algumas das melhores firmas de consultoria incluíam provisões e fortes recomendações para a criação de equipes de implementação e acompanhamento, compostos por arquitetos, engenheiros e outros profissionais da cidade. Em alguns poucos casos estas equipes foram de fato criadas, com justiça obtendo resultados bons (caso de Curitiba – enquanto o plano era feito por Jorge Wilheim, o prefeito Jaime Lerner, ele mesmo arquiteto, criou uma agencia oficial para acompanhá-lo). Pelo menos, estas equipes tiveram sucesso em transmitir a noção que um plano não deveria ser encarado como “artefato” acabado, que ele não deveria conter séries permanentes e definitivas de normas rígidas, mas um menos pretensioso corpo de linhas-guia que deveriam ser alteradas de acordo com as circunstâncias. A maioria das cidades, particularmente as pequenas e médias, não tinham condições nem a persuasão e a compreensão da natureza do processo de planejamento para criar tais equipes. Mais ainda, como ocorre também em outros países após cada eleição, governadores e prefeitos brasileiros nomeiam equipes totalmente novas para o executivo, introduzindo um elemento adicional de descontinuidade. Isto também contribuiu para a curta sobrevivência das equipes locais de acompanhamento.
Em algumas cidades, após as eleições municipais, alguns prefeitos levaram os planos para casa porque o eleito era adversário político. Em outros, o novo prefeito rejeitou o plano porque tinha desavenças com o prefeito anterior, e assim por diante.
Em 1972 ou 1973, tanto o SERFHAU quanto a prática de planejamento urbano caíram em completo descrédito no Brasil. O SERFHAU foi extinto em 1974 (na verdade foi substituído pelo CNPU – Conselho Nacional de Política Urbana, agência quase sem poder), quando mais de 100 milhões de dólares já havia sido gasto para preparar centenas de planos urbanos praticamente sem valor e inefetivos. Eu estou pessoalmente convencido de que para o país, suas cidades e toda a rede urbana, esse fracasso representou uma perda desastrosa. Para um país como o Brasil, com suas enormes taxas de crescimento populacional, processo de urbanização muito rápido, ter perdido a oportunidade de institucionalizar o planejamento urbano como processo permanente é realmente um desastre.
Como todos sabem, planejamento urbano é um processo muito complexo e conflitivo que costuma afetar interesses combinados e pontos de vista contraditórios. É prioritário para todo o resto um processo político multifacetado e às vezes complexo (p.105), como sabem todos que estão nele engajados ou encontraram na extensa literatura. Mas o planejamento urbano também implica muitos diferentes degraus do desenho urbano, variando do desenho de uma simples rua, suas calçadas, um bloco, cruzamento, quadras, jardins, seu tamanho, suas larguras, seus ângulos, e suas proporções, até o remodelamento de áreas centrais inteiras das grandes cidades como foi feito no séc. XIX na Europa, quando novamente isso se tornou um processo político complexo. Com sua experiência desafortunada e autoritária de planejamento urbano, o Brasil e sua gestão urbana perdeu uma oportunidade preciosas de aprender como tratar mesmo o desenho urbano mais simples e de menor escala. O Brasil ainda está na corrente do processo muito intenso de urbanização. No Planalto Central e além, na Amazônia, novas cidades estão nascendo. Capitais do sul como São Paulo, estão ampliando suas populações a um ritmo de 400.000 hab/ano e fisicamente se expandindo diariamente.
O Brasil sofreu na última década com a alta taxa de inflação e a recessão paralizante, suas cidades não tinham recursos financeiros suficientes para manter o ritmo das obras públicas que experimentaram durante os anos 1970. Apesar de tudo, o crescimento populacional ainda é tão grande que nas franjas de muitas cidades novas áreas se desenvolvem e novos bairros se construídos. Mesmo para aqueles novos desenvolvimentos, há um desenho urbano marcadamente pobre. Gestores urbanos e projetistas têm perdido a tradição urbana colonial, que é claro, seria inadequada de qualquer forma. Parece que têm perdido o chato, mas eficiente padrão testado das primeiras décadas do séc. XX, e apesar das frequentes tentativas, eram sempre incapazes de reproduzir adequadamente o padrão “cidade jardim” britânico, mesmo em bairros refinados, onde seriam adequados.
O desenho das áreas recém construídas poderia ser incrivelmente melhor se pelo menos o mais simples conhecimento de desenho urbano pudesse ter sido retido da experiência megalomaníaca e pretensiosa do final dos anos 1960 e início dos anos 1970.
O episódio do SERFHAU contribuiu para generalizar a noção óbvia que o processo de planejamento para grandes cidades só se desenvolveria se invés de ser imposto, fosse devidamente institucionalizado. Assim, muitas cidades, tanto por seu grande tamanho ou devido a suas circunstâncias favoráveis locais (p.ex. Curitiba) criaram agências de planejamento permanentes. As características, objetivos e escopo de tais agências em diferentes cidades variam de acordo com as circunstâncias locais e não se pode dizer que eram a mesma coisa. Através de um lapso de tempo maior que 20 anos, mesmo que no mesmo estado ou cidade, as atribuições de tais agências foram modificadas por uma variedade de circunstâncias, tanto local e nacional. Para o escopo deste artigo seria impossível e sem sentido descrever e avaliar uma a uma. Concentrarei as minhas atenções a São Paulo (a maior e a mais influente cidade), uma vez que costuma definir o padrão que era eventualmente seguido por outras cidades.
São Paulo: Agências de Planejamento que nunca planejaram
Desde que seu plano foi desenvolvido em 1968 por um consórcio de firmas privadas, SP tinha criado uma pequena equipe de acompanhamento, o GEP – Grupo Executivo de Planejamento. Em 1972, esta equipe foi ampliada e promovida ao nível de Secretaria Municipal, a COGEP: Coordenadoria Geral de Planejamento, formalmente responsável por planejar a cidade de acordo com o projeto prévio. Rapidamente ficou claro que o plano era irrealista na maioria de suas previsões e nem mesmo ao custo de uma gigantesca dívida seria responsável realizar as obras prescritas (p.106) A única recomendação do plano que pôde ser implementada foi o zoneamento da cidade em supostas áreas funcionais. As leis de zoneamento foram editadas e estão ainda[4] em vigor, com discutíveis conseqüências.
No mesmo ano (1972) foi criada também a EMURB – Empresa Municipal de Urbanização, para ser o braço executivo da COGEP. Naqueles anos o Metrô estava começando a ser construído e seus primeiros 20 km estavam próximos da conclusão. A principal razão para a EMURB existir era prover a cidade com um rápido e flexível instrumento de intervenção urbana para remodelar as regiões da cidade afetadas pelo metrô. O escopo era adquirir grandes terrenos para evitar especulação, e canalizar os benefícios da elevação do preço da terra que inevitavelmente iria ocorrer após a inauguração do metrô para a própria municipalidade, que tinha se endividado muito para continuar as obras. Um segundo e também importante objetivo era permitir que os planejadores urbanos promovessem um adensamento da ocupação ao longo das linhas do Metrô para otimizar seus benefícios. COGEP e EMURB deveriam trabalhar juntas, a primeira conduzindo o planejamento institucional e encaminhando leis e decretos necessários, e a segunda adquirindo a terra, providenciando os desenhos físicos e contratando empresas privadas para as construções.
Hoje, 15 a 20 anos depois, eu ainda considero o esquema todo adequado, bem concebido, necessário e auspicioso. Infelizmente, nunca funcionou.
Muitos proprietários de imóveis recusaram-se a vendê-los quando perceberam que tinham um bilhete de loteria premiado nas mãos. Cedo ou tarde ganhariam uma recompensa substancial. E quando a EMURB optava pela desapropriação, levavam os casos aos tribunais. Apesar de os atos da EMURB serem absolutamente legais e estar pagando valor de mercado pelas propriedades, o processo tramitou de tribunal em tribunal por muitos anos. Quando, quase 10 anos depois, o Supremo deu causa à municipalidade, era tarde demais. O metrô estava em funcionamento e os custos da terra e das edificações haviam crescido muito acima da taxa de inflação e o boom imobiliário havia minguado definitivamente qualquer possibilidade e planejamento nas regiões da cidade que COGEP e EMURB tinham estudado.
Ao mesmo tempo, muitos prefeitos e administradores municipais se sucederam e as intenções do planejamento original estavam completamente esquecidas e perdidas. São Paulo herdou dois planos da fase do SERFHAU, um para o município e outro para a conurbação de toda a região metropolitana. Nenhuma delas foi implantada. Sempre que um novo prefeito era eleito, pretendia extinguir a EMURB, mas como ninguém sabia o que fazer com ela, acabava sobrevivendo. Talvez porque as corporações públicas são como velhos soldados que nunca morrem, apenas desmaiam, a EMURB está aqui à procura de um escopo.
A COGEP sobreviveu e evoluiu melhor que a EMURB. Ela tinha suas funções levemente modificadas a cada nova administração, mas mesmo assim continuou ganhando sua própria capacidade interna. Quando a COGEP foi criada, entre suas mal definidas atribuições de planejamento, estavam garantidos alguns objetivos concretos e tangíveis: projetar e encaminhar as leis de zoneamento à câmara de vereadores para aprovação, e depois impô-las e geri-las.
(pg. 107) Em 1972, as leis de zoneamento eram vistas como o primeiro e básico passo para a implementação de um processo de planejamento urbano permanente institucionalizado. Em poucos anos ficou claro que não seria bem assim. No mínimo, gerenciar, avaliar e melhorar o zoneamento através dos anos permitiu a preservação da COGEP e sua sobrevivência como órgão minimamente respeitado. A função de preparar o orçamento municipal está embasada no conceito que ao definir a alocação dos recursos financeiros da cidade, a COGEP daria um instrumento decisivo para impor seus projetos de planejamento urbano. Isto também não aconteceu. Com taxas de inflação anual variando de 30% ao ano nos melhores momentos até mais de 1000% nos piores, os orçamentos da COGEP permaneceram sempre uma ficção política que poderia ser facilmente manipulada e alterada pelos prefeitos e seus assessores de gabinete. Além disso, o fato de que desde a criação da COGEP nenhum prefeito nomeou nenhum destes “homens fortes” para dirigi-la sugere que ela foi mais tolerada do que vista com seriedade.
Através dos anos, a COGEP sistematicamente uniu figuras importantes relacionadas à cidade e desenvolveu interessantes estudos sobre São Paulo. Uma vez mais, a descontinuidade administrativa frequentemente interrompia o processo e chegou a causar a perda de importantes estudos. Mas o segundo escalão administrativo e de profissionais foi mantido e com eles um memorável corpo de conhecimento sobre a cidade está sendo preservado para a ocasião na qual seu efetivo uso será necessário à prática. Espero presenciar tal momento.
Tanto COGEP[5] quanto EMURB as quais tentei resumir acima, são instituições municipais. Em 1973, uma lei federal criou as regiões metropolitanas com o propósito de integrar todos os municípios próximos às capitais estaduais. Esta era obviamente uma medida necessária uma vez que as regiões metropolitanas já eram há muito tempo verdadeiras enormes conurbações com todas as suas consequências conhecidas. Em 1975, o estado de São Paulo tentou implementar sua região metropolitana ao criar, como gabinete estadual, uma autoridade metropolitana e uma empresa executiva metropolitana, a EMPLASA. Infelizmente, e EMPLASA repetiu o caminho das outras agências. A ela também foi atribuída a tarefa de elaborar um zoneamento industrial para evitar a instalação de novas atividades poluentes na área metropolitana ou na maioria de suas regiões. Seu escopo de planejamento de coordenação de equipamentos de infra-estrutura como abastecimento de água, coleta de esgoto, deposição de lixo, telefonia, rede de distribuição de eletricidade e a integração da rede de transportes urbanos mostraram-se impotentes. Como os limites municipais não foram eliminados e ainda implicam grande extensão do poder político, prefeitos e câmaras de vereadores das cidades envolvidas nunca concordaram em abdicar de suas prerrogativas em favor de qualquer entidade metropolitana mas definida e sem tradição. Assim, a autoridade a EMPLASA está prestes a ser extinta.
Um fator adicional minando sua performance é o fato de que, no Brasil, as indústrias são a maior fonte tributária dos municípios. Consequentemente, os municípios ressentem-se e se opõem às medidas anti-poluição da EMPLASA.
ALGUMAS CONCLUSÕES DA EXPERIÊNCIA PASSADA
Apesar dos grandes esforços e pobres resultados da euforia do planejamento os anos 1960 e 1970, estou convencido de que isso deixou importantes e muitas lições aos planejadores urbanos brasileiros. Começou a criar uma geração de planejadores urbanos experientes e academicamente preparados, que nunca existiram antes. Devo admitir que no Brasil, em algumas áreas intelectuais, infelizmente as universidades estão muito atrás das corporações e instituições industriais. Este é claramente o caso da automação industrial, cibernética e ciências da computação, tanto hardware quanto software, ou engenharia médica e equipamentos. Mas certamente este não é o caso do planejamento urbano e estudos urbanos em geral. Para este propósito, os profissionais graduados hoje são melhor treinados que aqueles das gerações precedentes. A esperança é que no devido tempo isto possa trazer efeitos positivos.
Segundo, mesmo que os experimentos de tentativa e erro das últimas décadas tenham trazido poucos ou nenhum efeito, eles estão lentamente difundindo a consciência sobre a necessidade de planejamento entre os cidadãos comuns. Em enormes megalópoles como São Paulo e Rio de Janeiro ouve-se frequentemente na imprensa sobre a ausência de planejamento. Terceiro, todos nós aprendemos que enquanto nas sociedades contemporâneas complexas e abertas é impossível impor o planejamento urbano como ato imposto à força de cima para baixo, é também impossível alcançá-lo sem determinação política. Durante todo o lapso de tempo e os episódios institucionais que tentei resumir acima, ficou claro que progresso e retrocesso são fortemente dependentes das mentalidades e atitudes de prefeitos e governadores. Aqueles que estavam na administração eleitos para um mandato contínuo e regular normalmente estavam preocupados em apoiar as atividades de planejamento, enquanto os indicados, ou aqueles que viam seus mandatos como simples oportunidades para cargos políticos mais elevados, normalmente as negligenciavam. Se a sociedade brasileira for bem sucedida em sua atual transição para um sistema democrático consolidado, pode-se ter esperança que o planejamento terá maior atenção e melhores condições objetivas.
Espero que tenhamos aprendido com os esquemas de planejamento artificialmente produzidos pelo SERFHAU que o planejamento urbano, além de envolver grande quantidade de competências e conhecimento técnico, é acima de tudo um processo político. Não deveria ser episódico, mas sim um processo permanente envolvendo toda a população e incentivando seus líderes políticos. Nenhum plano será catalogado e esquecido, de acordo com as idiossincrasia pessoal de todo novo prefeito, se as massas da população estivessem engajadas neles. Isto é escrito em todo livro escolar e, como tentei mostrar, não é ignorado na teoria. Mas a experiência prática é um problema totalmente diferente. [1] O texto original sugere que a crítica é feita em função da segregação espacial de classes sociais, entre seção política e administrativa monumental e as cidades satélite. [2] A extinção do BNH só evidencia a característica demagógica dos políticos brasileiros. Apesar das políticas equivocadas impostas ao banco, o BNH era um instrumento muito eficiente que foi desmontado por razões unicamente simbólicas. [3] Esses subsídios não eram intencionais, eram causados pelas crescentes taxas inflacionárias no final da década e resultante da discrepância entre indexação dos débitos e aquele da (instalment) da amortização. [4] Não estão mais. [5] Em 1983 a COGEP foi renomeada para SEMPLA – Secretaria Municipal de Planejamento