Trabalho apresentado à FEA-USP, durante a disciplina EAE111 – Introdução à economia II para não-economistas
Prometeu desacorrentado, David Landes, Ed. Campus x Chutando a escada, Ha-Joon Chang. Ed. Unesp.
A diferença entre os textos, além do formal, é também uma amostra do confronto entre um pensamento ocidental e um oriental. Logo de início, Landes exalta a Revolução Industrial, o grande salto tecnológico ocidental, enquanto que o Oriente já havia passado por épocas de grande avanço e de influência sobre o mundo ocidental. Landes cita a rejeição da China aos primeiros avanços da Revolução Industrial incluindo uma posição xenófoba e presunçosa do proveniente do ocidente, tendo em vista os séculos anteriores de evolução chinesa sendo exportadas ao mundo ocidental, posição bem diferente da japonesa, que recebeu com entusiasmo e sucesso ao desafio tecnológico. Cita também o fator religioso como barreira para o mundo islâmico.
Outra posição de Landes é a de que a Europa, em especial a Inglaterra, era o receptáculo natural da Revolução Industrial por já estar mais preparada para isso, econômica, política e culturalmente do que o resto do mundo. Do ponto de vista econômico, afirma que já era uma nação mais rica, que oferecia facilidades de financiamento para inventores e baixo custo para que um empreendedor qualquer adquirisse máquinas simples. Havia uma avançada estrutura financeira, com uma rede nacional de descontos e pagamento montada, com um sistema financeiro que já permitia que a indústria recorresse a empréstimos de setores agrícolas. Do ponto de vista cultural, que já difundia com facilidade o conhecimento tecnológico, já implantara o pensamento racionalista inclusive pelo protestantismo calvinista, e que havia interesse da população pelo tema – tinham grande receptividade às oportunidades e eram fascinados pela riqueza e pelo comércio. Tinham maior facilidade a fazer associações em busca de maior qualificação em certas áreas, ao contrário, por exemplo, de empresas familiares francesas. Em toda a Europa, os governantes já haviam substituído os impostos variáveis pelos regulares a taxas fixas, e o confisco pelas expropriações com indenizações. Do ponto de vista político, já havia estabelecido garantias dos direitos de propriedade, além da noção do contrato formal. A nobreza britânica era diferente de outras nações, tinha um caráter mais empresarial, não tinha imunidade fiscal, acompanhava sua produção, buscava o aumento da receita, constituía um participante, não um parasita da sociedade.
Segundo Landes, as novas técnicas foram impulsionadas na Inglaterra pela pressão da demanda sobre o modo de produção, e sua rápida difusão foi decorrente da oferta abundante dos fatores. Defende também que a formação de capital tem pequena importância no crescimento do produto agregado, que mais importante seria a qualidade dos insumos, como tecnologia e conhecimento dos trabalhadores.
Chang, por outro lado, questiona a cartilha do consenso de Washington para os países em desenvolvimento, afirmando que os países ricos não se desenvolveram aplicando essas “boas práticas”, tais como políticas macroeconômicas restritivas, a liberalização do comércio internacional e dos investimentos, a privatização e a desregulamentação. Estariam os países ricos querendo esconder os segredos de seu sucesso? Aliás, afirma que não seriam o que são hoje se adotassem a política e as instituições que recomendam hoje, pelo contrário, adotaram medidas contrárias a estas recomendações, as quais hoje são condenadas pela Organização Mundial do Comércio – OMC.
Citando List, defende o protecionismo em casos de livre comércio entre países de diferentes níveis de desenvolvimento a fim de proteger a indústria nascente, e cita a crítica de Adam Smith à intenção de industrializar os Estados Unidos (estariam, segundo ele, condenados a uma economia agrária e qualquer tentativa de industrialização seria um atraso). De fato, os EUA tornaram-se protecionistas e lograram sucesso com sua indústria nascente. Este já é um ponto de discordância com Lanes, o qual discretamente sugere que há mais benefícios no livre-comércio, dá em seu texto o exemplo da tentativa da Inglaterra de proteger a lã nacional impedindo a entrada de tecidos de algodão do Oriente, que acabou estimulando a produção interna de algodão (que se beneficiou melhor da mecanização). Segundo Chang, os atuais países desenvolvidos usaram políticas intervencionistas industriais, comerciais e tecnológicas para promover a indústria nascente durante o chamado período de catch-up. Esses estados nacionais chegaram a financiar a espionagem industrial, não reconhecer patentes estrangeiras e aplicar outras medidas legais e ilegais para beneficiar a indústria própria. Em seguida, para ficar à frente dos competidores em termos de conquista de fronteira tecnológica, adotaram uma série de medidas, às vezes usaram a força inclusive. A própria Inglaterra, que começou com o Estado liberal, impôs tarifas alfandegárias em 1932, e no pós-guerra concluiu a supressão do que restava do Estado liberal.
Observe aqui a disparidade entre Landes e Chang: aquele sugere que toda esta conquista tecnológica decorre “naturalmente” de uma situação pré-estabelecida, como uma vantagem inicial, enquanto que, para Chang, a tecnologia foi conquistada a muito custo, utilizando-se de protecionismo à indústria nascente, com políticas e medidas hoje condenáveis.
Com relação aos regimes de direito à propriedade, Chang discorda da correlação positiva entre a força dos direitos de propriedade e desenvolvimento econômico, com base no pensamento de que o papel desses direitos é muito mais complexo. Diz que, apesar de beneficiar a sociedade como um todo, acabam favorecendo alguns e prejudicando outros, e se alguns grupos utilizariam melhor certas propriedades do que seus proprietários, a não proteção a esses direitos de propriedade e a transferência delas seria uma alocação mais eficiente de recursos. Portanto, importa saber que tipo de propriedade está sendo protegida e por quais critérios.[1] Cita que, no início da industrialização, o direito de propriedade teve que ser violado com freqüência para a construção de outros, principalmente em países jovens como os Estados Unidos. Como já citado, Landes, por outro lado, afirma que os direitos de propriedade fazem parte do cenário propício à Revolução Industrial na Europa de forma positiva, sem fazer esse tipo de questionamento. Aliás, para Landes, o “espírito faustiano de dominação” deu aos europeus vantagens na invenção e adoção de novas tecnologias e proporcionou a “liderança do mundo”.
Chang toca num tipo específico de propriedade, a intelectual, através de alguns grupos de leis, como a de patentes, de direito autoral e copyright e da marca registrada, afirmando que não foram devidamente respeitadas, mesmo no século XX, pois as leis não forneciam proteção adequada, e mesmo os países mais desenvolvidos continuaram desrespeitando os direitos de propriedade intelectual (DPI) de cidadãos de outros países. No início da industrialização, diz, apenas poucos países tinham Leis de Patentes, e sua qualidade era péssima. Toca também em vários pontos da governança empresarial, como o da responsabilidade limitada, que apesar de Adam Smith ter afirmado que ela poderia levar os administradores à “vadiagem”, e John McCulloch que tornaria os proprietários negligentes ao supervisionar os administradores que contrataram, e outros acreditarem que poderia gerar especulação financeira, ficou comprovado que a responsabilidade limitada ajuda a socializar o risco. Enfim, apesar de poder criar “risco moral”, a responsabilidade limitada (joint stock companies) passou a ser amplamente aceita. Nas últimas décadas, os grandes conglomerados passaram por diversas crises econômicas, e reforçou a necessidade de Leis de Falência eficazes, inclusive para preservar empregos. A dos EUA pende para o devedor, a do Reino Unido, para o credor, e a da França, para o empregado, mas todas procuram ser eficazes, que é que interessa para a sociedade. Ficou mais evidente que a falência não era necessariamente fruto de ingerência administrativa, e que poderia vir de fatores externos aos de domínio dos administradores. As leis de falência ajudaram a anistiar os falidos, a socializar o risco e, consequentemente, incentivaram as indústrias a assumir maiores riscos, favorecendo os negócios de larga escala. A obscuridade da contabilidade e recentes envolvendo falta de transparência têm chamado a atenção para as auditorias, relatórios financeiros e disclosure. Essa questão da governança extrapola, então, os limites da empresa, porque grandes conglomerados poderosos têm capacidade de afetar toda a economia, de forma que toda a sociedade deveria preocupar-se com suas ações, não apenas os acionistas. Daí surgiram as Leis da Concorrência, como as antitruste ou antimonopólio. E assim por diante, Chang cita também o importante papel do banco central, monopolista na emissão de moeda, com poder de intervir no mercado financeiro; a necessidade da regulamentação dos títulos, que tornaram-se uma fonte de instabilidade financeira para os países em desenvolvimento; necessidade de desenvolver as instituições financeiras públicas e novos mecanismos fiscais e administrativos para melhorar a coleta. Até mesmo nessa área o tom dos dois textos são dissonantes: Landes exalta a vocação dos povos europeus para a busca do poder, que originou o mercantilismo, enquanto Chang procura avaliar o caminho mais interessante para todos, que pode não ser o da conquista do poder por um setor ou segmento específico da sociedade.
Mais à frente, Chang fala do bem estar social e das instituições trabalhistas, que são mais de que “redes de seguridade”, pois podem aumentar a eficiência e a produtividade da economia, através do investimento em saúde e educação que pode proporcionar melhorias na qualidade da força de trabalho. Além disso, reduzem tensões sociais e dão maior legitimidade ao sistema político. Estabilizadores automáticos como o salário-desemprego podem inclusive minimizar os efeitos das crises econômicas. Para Chang, todas essas medidas devem ser confrontadas com seu custo potencial, pois há três principais problemas: 1. as instituições de bem-estar social podem ter efeito negativo sobre a ética do trabalho e a auto-estima dos que recebem seus benefícios; 2. questões que aparentam ser simplesmente técnicas podem determinar eficiência e legitimidade dessas instituições; 3. aumento de carga tributária para financiar o welfare state pode levar a redução no investimento por parte dos mais ricos se o cenário político não estiver estabilizado e transmitir confiança. Fala também do combate ao trabalho infantil e às jornadas de trabalho abusivas, citando as extensas jornadas dos operários do século XIX. Enfim, afirma que os países desenvolvidos de hoje tiveram um avanço lento e tortuoso de suas instituições, e que eram institucionalmente muito menos avançados do que aqueles em estágios similares de desenvolvimento hoje, comparando a Índia atual (que tem o sufrágio universal) com a Grã-bretanha de 1820 (que ainda utilizava outras formas de credenciamento para as eleições, não tinha nem o sufrágio universal masculino), ou a Itália de 1875 com o Paquistão de hoje, dizendo que são estágios comparáveis de desenvolvimento econômico, porém a Itália de então não tinha sufrágio universal masculino, burocracia profissionalizada, judiciário com alguma independência e profissionalismo, banco central com o monopólio da emissão de moeda, ou uma lei de concorrência, instituições que o Paquistão de hoje tem. Diz que os Estados Unidos de 1913 estavam no nível de desenvolvimento do México de hoje, mas com um grau de desenvolvimento institucional muito inferior: mulheres formalmente excluídas do direito de votar, assim como negros e outras minorias étnicas por todo o país; o sistema de banco central era incompleto; o imposto de renda recém-criado; a lei de concorrência só apareceria com o Clayton Act no ano seguinte; não havia regulamentação federal para a transação de títulos nem para o trabalho infantil.
Retornando um pouco à questão das políticas atualmente condenadas pela OMC para países em desenvolvimento, Chang apresenta também exemplos do desenvolvimento de alguns países, como a França, que após a queda de Napoleão estabeleceu a política do laissez-faire, liberalismo econômico e baixas taxas de importação, mas logo percebeu que isto prejudicava as indústrias francesas e adotaram o protecionismo no pós-guerra; ou a Suécia, que obteve crescimento industrial com políticas protecionistas após a primeira guerra; países impedidos de adotar o protecionismo, como o Japão, adotaram o investimento estatal em empresas modelo, ou outras formas de intervencionismo para desenvolver seu parque industrial, como a Holanda, por exemplo. Chang chega a pedir explicações sobre os motivos pelos quais os atuais defensores do laissez-faire e do livre-comércio para os atuais países em desenvolvimento consideram que as políticas e medidas protecionistas e intervencionistas, o modelo histórico de proteção à indústria nascente não são válidas para o mundo de hoje.
Portanto, difere o pensamento de Chang em relação ao de Landes no que está sendo considerado como motor do desenvolvimento. Lanes ressalta aspectos pré-existentes que, segundo ele, propiciaram o crescimento tecnológico e, conseqüentemente, o econômico. Por exemplo, ao explicar o desenvolvimento da indústria de algodão na Inglaterra, agrupa as invenções que a transformou em três princípios: substituição da habilidade e do esforço humano pela máquina, substituição de fontes animadas de energia por fontes inanimadas e o uso de matérias primas novas e abundantes. Diz que as fábricas procuravam centros urbanos e populosos para se estabelecer (apesar das primeiras terem surgido no interior), diz que uma grande vantagem competitiva da Inglaterra em relação a outros países foi a inexistência de taxas alfandegárias dentro do próprio território, tornando mais barato o transporte de matéria prima e do produto acabado, ou seja, um defensor do laissez-faire e do livre-comércio como princípio para o desenvolvimento. Mas, ao mesmo tempo, menciona que o Estado investia bastante na infra-estrutura de transporte, principalmente a fluvial, barateando ainda mais o preço final do produto, ou seja, indiretamente o estatal era direcionado para o desenvolvimento industrial do país. Segundo ele, o acontecimento da Revolução Industrial apoiou-se nos fortes mercados interno e externo (este último eram as colônias e outros países), colocando que a necessidade de atender a essa demanda crescente era a principal motivação do desenvolvimento tecnológico, sem citar o protecionismo ou investimentos diretos do estado, desrespeitos à condição humana no próprio país ou no exterior, ou qualquer outra medida ou política que hoje seria condenada pela OMC.
[1] Existe atualmente, no Brasil, a discussão sobre a função social da propriedade, em especial na gestão dos espaços urbanos, que não coloca a questão da alocação mais eficiente de recursos, mas pressiona especuladores a colocar no mercado terrenos vazios, por exemplo. Vide Lei Federal 10.257/2001.