por Ricardo Trevisan
Contexto histórico-econômico
Segundo Juergen Richard Langenbuch, a urbanização de Santo André tem origem na implantação das indústrias ao longo da ferrovia Santos-Jundiaí, que naquela época era a São Paulo Railway. Este trecho da linha tinha grandes vantagens por estar entre a capital da província (mercado consumidor e fornecedor de mão-de-obra) e o porto de Santos (fonte de matéria-prima e bens de capital, além de ser base para exportação ou navegação de cabotagem que fazia a distribuição para outras províncias). A implantação dessas indústrias no território que hoje é Santo André foi delimitada pelo caráter e andamento da industrialização do país, de forma que no início da operação da ferrovia ainda havia um número mínimo de (primitivas) indústrias no país. O primeiro movimento mais consistente no sentido de empresariamento nacional para a atividade industrial é da época da substituição de importações (tímida, mas factível) da Primeira Guerra Mundial. Tal fato coincide com a implantação das primeiras indústrias ao longo da ferrovia em Santo André por volta de 1920. As políticas de fomento à industrialização nacional através da indústria de base estatal de Getúlio Vargas surtiram efeito no Estado Novo e Santo André recebeu inúmeras indústrias ainda nos anos 1920 e 1930. O esforço de substituição de importações, diversificação e modernização do parque industrial nacional dos anos 1950 (a era Juscelino Kubitschek) também significou mais investimentos em indústrias no ABC paulista. Até o primeiro choque do petróleo, em 1973, o ABC continuou consolidando seu caráter de localização industrial da capital paulista. Num primeiro momento ao longo da ferrovia Santos-Jundiaí, depois ao longo das rodovias Anchieta (1947) e Imigrantes (1974). Durante todo este período, essas empresas estiveram fortemente influenciadas pelos conceitos fordistas de produção.
A partir do final da década de 1970, e principalmente durante a década de 1980, esses modelos fordistas começaram a ficar desatualizados. A indústria japonesa já tinha atingido os mais altos patamares de qualidade com a Gestão da Qualidade Total de Ishikawa, desassociando os conceitos de preço alto e qualidade. Suas estruturas enxutas e produção em células baseadas nas tradições culturais nipônicas derrubavam os preços finais e o mercado norte americano sentia a concorrência asiática intensa agravando a crise interna nos Estados Unidos. As respostas ocidentais vieram através da reengenharia, downsizing, clean production, desconcentração vertical / horizontal e diversos outros conceitos que tinham por objetivo aumentar produtividade e eficiência. Estes conceitos eram extremamente fortes durante os anos 1990.
O Brasil viveu nessa década a abertura de mercado e o alinhamento com o Consenso de Washington, a concorrência e a desregulamentação eram vistas com bons olhos. O território brasileiro passou a ser ambiente competitivo, surgiu a guerra fiscal disputando as fontes de receita tributária e geradores de emprego e renda. O ABC paulista não estava preparado para esta mudança ambiental profunda, e algumas indústrias começaram a migrar para outros locais, outras reduziram suas estruturas e modernizaram a produção. Em qualquer um dos dois casos o resultado era a redução de mão-de-obra, queda na renda per capita e desemprego estrutural. A qualidade urbana em geral se precarizou junto, havia menos recursos para investimentos públicos e poucas alternativas para a baixa renda, cenário propício para a favelização das cidades. Durante a década de 1990 houve o maior crescimento das favelas do município de Santo André.
O Plano Diretor municipal de 2004 tentou reverter, no que acreditava que podia, este quadro: procurou reduzir restrições de uso e ocupação do solo, ampliou o índice construtivo (coeficiente de aproveitamento) da maior parte do território (de 1,34 para 2,5) e instituiu os instrumentos urbanísticos do Estatuto da Cidade, os quais, além de dar poderes ao município de fazer valer a função social da propriedade, inaugurou uma nova era de instrumentos negociais nas mãos do Poder Público (como Operações Urbanas Consorciadas, Direito de Preempção, Direito de Superfície e Transferência do Direito de Construir). Estes últimos ainda são, em geral, pouco utilizados pelas municipalidades brasileiras, que além de não possuírem tradição deste tipo de intervenção no mercado, não possuem estruturas funcionais preparadas para isto.
O primeiro efeito que se sentiu foi o do Parcelamento, Edificação e Utilização Compulsórios, que pressionou os proprietários de terrenos a colocá-los no mercado. Assim que as notificações começaram a ser executadas, os proprietários passaram a estabelecer maior contato com o Poder Público municipal. Mas o efeito mais importante veio num momento seguinte.
Nesse período, houve ampliação da oferta de crédito para a construção civil e para a aquisição da casa própria. Houve também extensão das políticas públicas do governo federal para a redução do déficit habitacional brasileiro (estimado em 8 milhões de unidades habitacionais).
Incorporação imobiliária em Santo André
Simultaneamente à crescente oferta de crédito, o país começou a vivenciar há alguns anos uma redução das taxas básicas de juros. Entre setembro de 2005 e março de 2008, a taxa Selic (meta) caiu de 19,75% a.a. para 11,25% a.a.. Como resultado desses dois fatores, uma parcela maior da população passou a ter acesso ao financiamento bancário para a aquisição da casa própria, principalmente os segmentos populares que estavam sem alternativas viáveis. Este segmento representa, teoricamente, um mercado de rentabilidade menor, porém muito mais amplo. Mas, na prática, a concorrência acirrada pelos mercados de mais alta renda durante vinte anos de economia turbulenta e fuga dos mercados de risco derrubou as margens de lucro das incorporadoras, de forma que a rentabilidade dos atuais segmentos populares é atrativa à maioria das grandes empresas do ramo que atuam nas grandes capitais brasileiras.
Outro fator importante foi o dos marcos legais regulatórios que transformaram o mercado imobiliário em um ramo mais seguro e atrativo ao investidor. O primeiro foi o do Patrimônio de Afetação, de agosto de 2004 (parte de um conjunto de medidas do governo federal que ficou conhecido como “pacote da construção”), que isola a contabilidade de cada obra, passando a ser separada da contabilidade da incorporadora ou construtora. O objetivo era evitar problemas similares aos deixados pela construtora Encol, de São Paulo, que, ao quebrar, deixou muitos mutuários sem possibilidade de dar continuidade a seus empreendimentos. Com a nova legislação, caso ocorra a falência da construtora ou incorporadora, os compradores poderão dar continuidade à obra.
O segundo marco, apesar de mais antigo, só passou a ter efeitos práticos mais recentemente. Trata-se da Lei Federal 10.257/2001, o Estatuto da Cidade, que instituiu medidas de combate à retenção especulativa de lotes urbanos através de instrumentos urbanísticos como Parcelamento, Edificação e Utilização Compulsória, IPTU Progressivo no Tempo e Desapropriação com Títulos da Dívida Pública (com prazo de dez anos para pagar o proprietário). Porém, a Lei Federal determinou um prazo de cinco anos para que os municípios (de determinado porte, turístico, suscetível a impactos ambientais ou componente de regiões metropolitanas) completassem a revisão de seus Planos Diretores. Como isto é sempre um processo político relativamente longo, os primeiros municípios a adotar os instrumentos do Estatuto só os aplicaram por volta de 2004. O resultado foi que a partir de então, houve ampliação da oferta de lotes urbanos, muitos dos quais dotados de ampla infra-estrutura urbana e que nunca haviam sido ocupados antes, ou seja, não haveria custos de demolições.
Esta nova configuração do mercado levou muitas grandes incorporadoras a buscar os segmentos populares. Os produtos para estes mercados são chamados de HMP – Habitação de Mercado Popular e HIS – Habitação de Interesse Social. Porém, suas estruturas e culturas organizacionais estavam orientadas a outro público. Além disso, as marcas estavam associadas a produtos mais sofisticados e mais caros. A solução encontrada por muitas foi criar outras empresas controladas, com outras bandeiras, para estes públicos (Cyrela criou a Living, a Gafisa criou a Fit Residencial, Klabin Segall criou a Olá, etc.). Estas novas incorporadoras, em geral, foram compostas e dirigidas, em parte, por parte do pessoal de suas controladoras e tiveram algumas dificuldades iniciais para se adaptar a um novo público com aspirações e exigências muito distintas das que estavam habituados. Enquanto isso, empresas que tradicionalmente já atuavam neste segmento tiveram a oportunidade de ter crescimento inédito (por exemplo, a Tenda e a MRV, ambas originadas em Minas Gerais e especializadas em baixa renda, passaram a figurar entre as primeiras em participação de mercado de São Paulo).
Após e estabilização da economia com o Plano Real e a modernização do mercado de capitais, aumentou o número de empresas de diversos segmentos que realizaram a abertura de capital, ou Initial Public Offering – IPO. As empresas da construção civil, tradicionalmente empresas familiares e com administradores ligados a essas famílias, viram-se obrigadas a modernizarem-se ou perderem mercado para aquelas que o fariam. Passaram a profissionalizar a gestão, buscar novas fontes de recursos (muitas receberam investimento estrangeiro), e passaram a abrir também o capital, atitude inédita para uma incorporadora brasileira até então. A combinação desses dois fatores levou essas incorporadoras renovadas, com capital líquido disponível e agora pressionadas por um número maior de acionistas, a buscar novos negócios e mercados, especialmente a atuação nos mercados populares. Era necessário encontrar terrenos baratos e dotados de boa infraestrutura urbana, características possíveis nas antigas áreas industriais tanto da capital como dos municípios industrializados vizinhos.
Como as primeiras indústrias instalaram-se ao longo das ferrovias, estas viraram áreas de interesse para os empreendedores imobiliários. Além disso, o traçado das ferrovias tinha uma limitações como declividade máxima reduzida e raios de curvatura horizontal grandes. Estas características são encontradas ao longo das várzeas espraiadas, tais como a do Rio Tamanduateí, porém resguardando-se o suficiente das cheias e ocupando cotas o mais elevadas possíveis. O resultado dessas condicionantes foi a conformação de longos trechos de largas faixas de terra entre rios e ferrovias, que justamente por ficarem isolados por estes dois elementos, tiveram pouco parcelamento do solo ou abertura de vias, e permaneceram como grandes glebas (mesmo as áreas que nunca foram ocupadas por indústrias). Este é o caso da área chamada de Eixo Tamanduatehy, em Santo André.
A presença destas grandes incorporadoras e construtoras em Santo André tem relação direta com esta oferta de lotes grandes e baratos ao longo do Tamanduateí. Tradicionalmente, os incorporadores atuantes na cidade eram originários da própria região e ofertavam para a classe média alta poucos produtos. A entrada das empresas de capital aberto em busca de áreas para HMP mudou o mercado local. Mesmo as incorporadoras locais e familiares tradicionais buscaram algum grau mais elevado de modernização e sondaram os mercados populares também.
Por fim, após setembro de 2008, a crise financeira internacional provocada pelos mercados hipotecários norte-americanos de risco (subprimes), provocou uma crise de liquidez internacional que resultou na retração do crédito e da demanda interna. Tal cenário afetou muito as incorporadoras (retração de investimentos), mas demorou mais para atingir as construtoras, que estão executando os produtos vendidos durante o período de crescimento.
As indústrias que permaneceram em Santo André
A intensa procura por lotes para fins residenciais levou à negociação de lotes vazios em áreas industriais e também galpões de antigas fábricas que encerraram suas atividades ou transferiram suas operações para outros lugares. Mas outras indústrias ficaram, estão ativas e algumas destas podem vir a ter conflitos com empreendimentos residenciais vizinhos que estão chegando, por operarem 24 horas por dia. Este é um problema trazido para a cidade pelo fim do zoneamento funcional do Plano Diretor de 2004, que não visualizava na época de sua elaboração um crescimento tão acentuado do mercado imobiliário residencial em tão pouco tempo.
Porém, a permanência dessas indústrias não é de todo um mau negócio. Muitas indústrias que precipitaram-se em colher os benefícios fiscais oferecidos em outras cidades e regiões do país enfrentaram outros problemas, como dificuldade de obter mão-de-obra local, insatisfação da mão-de-obra transferida de seu local de origem, dificuldades com fornecedores diversos, algumas não encontraram a infra-estrutura prometida, etc. Além disso, alguns dos principais problemas que encontravam em Santo André foram atenuados. A força dos sindicatos foi reduzida com a desconcentração vertical e redução de custos fixos. O alto custo da terra foi amenizado pelo aumento da eficiência produtiva por metro quadrado com a introdução de novas tecnologias, que está permitindo que muitas empresas vendam parte dos terrenos originalmente ocupados. A queda generalizada da renda do trabalhador e a saída de muitas empresas criou uma reserva de mão-de-obra qualificada e de custo decrescente disponível ao empregador. A modernização e ampliação dos serviços dos trens da CPTM e a promessa de conexão fácil com o Metrô estão ampliando ainda mais este mercado de mão-de-obra para as empresas da região.